quarta-feira, 25 de outubro de 2017

NEOLIBERALISMO E GOZO – AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO

Gostaria de colocar, inicialmente, que, para mim, os “tempos sombrios” de que fala o tema deste Congresso têm a ver com a globalização neoliberal. Que “sombras” o neoliberalismo projeta sobre o campo do Direito? E como abordar essa questão dentro de uma perspectiva interdisciplinar que inclua indagações a partir do campo da Psicanálise – e, mais especificamente, a partir de uma referência à noção de Lei?O termo neoliberalismo contém tanto uma idéia de ruptura quanto uma idéia de continuidade. Trata-se de um “liberalismo”, como o nome indica – e aí temos o elemento de continuidade. Mas esse liberalismo é “novo”, como aponta o prefixo neo – e aí temos a indicação de uma ruptura. Mas em que consiste essa continuidade? Qual o liberalismo “anterior”, cujo nome e cujos traços (alguns, pelo menos) teriam sobrevivido no novo liberalismo? E qual a natureza da “ruptura” que se teria operado nessa passagem? Em suma, qual a “novidade” que o neoliberalismo traz?Ainda que um tanto impropriamente, vou chamar de “clássico” aquele liberalismo mencionado acima como “anterior”, de base individualista e contratualista, cujas raízes podem ser localizadas no século XVII, sobretudo no pensamento de Thomas Hobbes, Hugo Grotius e Baruch de Espinosa, e cuja admirável elaboração formal, passando, ainda naquele século, por John Locke, se desenvolveria no século seguinte, o “Século das Luzes”, na pena brilhante de pensadores como Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau, entre outros, para consumar-se, enquanto pensamento propriamente liberal, já no início do século XIX, com Benjamin Constant em seu De la Liberté chez les Modernes.Pode-se dizer, de modo bastante sumário, que o liberalismo clássico se estrutura sobre um tripé constituído pelos princípios da igualdade, da liberdade e da fraternidade. A igualdade de que aqui se trata é de caráter jurídico-formal, consagrada na fórmula “todos são iguais perante a lei”. Essa igualdade se opõe ao sistema de privilégios do Antigo Regime, em que tanto a norma jurídica a ser aplicada quanto o foro competente para essa aplicação podiam variar conforme a classe social das partes envolvidas. Trata-se, portanto, de um princípio de caráter essencialmente jurídico, com importantes consequências políticas, que determina, em essência, que a lei deve ter caráter geral e impessoal e que o juiz deve abster-se de julgar a partir de uma posição discriminatória (que originariamente se referia à discriminação de classe e posteriormente, já no século XX, foi-se ampliando no sentido de alcançar também discriminações de cunho racial, étnico, sexual etc.). Esse princípio proíbe, no fundo, que a lei discrimine e que as decisões judiciais sejam tomadas com base em prejulgamentos e preconceitos. Note-se que não se trata ainda de uma igualdade de condições e oportunidades, como o pensamento de inspiração socialista viria propor a partir de meados do século XIX.No que concerne à liberdade, trata-se, acima de tudo, de um princípio que visa a consagrar a liberdade contratual, especialmente no terreno dos negócios. Fica pressuposto que, nos contratos, as partes comparecem em posição de igualdade umas perante as outras (condição essa a que se chega mediante a abstração das desigualdades reais em nome de uma presumida igualdade formal) e que, uma vez firmados, os contratos devem ser respeitados. Trata-se, em suma, de uma espécie de embrião daquilo que posteriormente viria a ser designado como liberdade de mercado, ou seja, uma liberdade dos agentes econômicos no sentido de realizarem seus negócios da maneira que melhor lhes convenha, sem a intervenção do Estado, o qual se limitaria a estabelecer as normas mínimas limitadoras dos excessos a que a liberdade contratual sempre tende a conduzir e garantidoras da manutenção das regras do jogo. Esse conjunto de condições ficou conhecido como laissez faire, laissez passer. A liberdade de que aqui se trata é uma liberdade necessariamente privada, por oposição à liberdade pública tal como foi concebida e vivenciada pelos antigos gregos. Este, aliás, é o âmago da tese de Constant na obra acima referida, que é uma espécie de síntese do pensamento liberal. Vale observar, ainda, que, no binômio igualdade/liberdade, é esta última que tem a primazia. Para o pensamento liberal-burguês, a igualdade perante a lei é, antes de tudo, a condição de possibilidade da efetivação da liberdade contratual. Não é à toa que o nome que designa todo esse contexto que venho delineando é “liberalismo” (e não, por exemplo, “igualitarismo” – termo que, aliás, se aplicaria melhor a um contexto de cunho socialista).fraternidade, por sua vez, se refere aos laços de solidariedade necessários à própria manutenção da ordem social, e implica logicamente o estabelecimento de políticas que reduzam desigualdades extremas que possam representar o perigo de ruptura violenta da ordem estabelecida. Pois bem, o neoliberalismo também se assenta sobre um tripé: a desigualdade, a competição e a eficiência. A desigualdade, aqui, não deve ser entendida somente no sentido de uma exclusão econômica e social, que no limite se configuraria como um imenso contraste entre a concentração de quase toda a riqueza nas mãos de poucos e a situação de extrema pobreza de muitos – embora, como adiante veremos, não deixe de incluir esta possibilidade. Na qualidade de um dos princípios basilares do neoliberalismo, a desigualdade consiste, sobretudo, numa situação de dissimetria entre os competidores no mercado econômico, a qual é apresentada como favorável à competição e, por via de consequência, ao desenvolvimento do mercado. Para uma melhor compreensão disso, considere-se que os princípios do ideário neoliberal foram formulados na metade da década de 1940, durante o pós-guerra, quando toda uma política de inspiração keynesiana, francamente favorável a intervenções do Estado no domínio econômico com o fim de corrigir distorções decorrentes da concentração de riqueza inerente ao modo de produção capitalista, bem como de construir as bases do Estado de bem-estar social nos moldes de uma social-democracia, era implementada de modo crescente em vários países da Europa. O neoliberalismo se constitui como uma crítica feroz a esse modelo. Vê toda política de bem-estar social sob o ângulo exclusivo dos custos e, sob tal ângulo, identifica essas políticas ao puro desperdício de dinheiro público, com prejuízos irreparáveis à dinâmica da economia de mercado. Nessa perspectiva, ele é mais um antikeynesianismo do que um antimarxismo, ainda que, obviamente, o marxismo e toda a experiência socialista e comunista também estivessem entre os alvos de sua crítica.  Friedrich Hayek, um dos primeiros a formular os princípios da doutrina neoliberal, assim se expressou sobre esta questão em seu O Caminho da Servidão, escrito em 1944, que tinha como um de seus alvos o Partido Trabalhista inglês, que venceria as eleições de 1945: “As raízes da crise […] estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, no movimento operário, que havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais”[1]. Hayek argumentava que “o novo igualitarismo […] deste período, promovido pelo Estado de bem-estar, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos”[2]. Daí a profunda avaliação positiva que os neoliberais fazem da competição, e sua visão da desigualdade como um valor positivo, estimulador dessa “prosperidade de todos”.competição, por seu turno, é, na perspectiva neoliberal, o próprio motor da economia de mercado. Ocupa o lugar inquestionável de mola de todo o desenvolvimento da economia. Os agentes econômicos neoliberais são preparados para a competição, isto é, para vencer na competição. A hipervalorização da competição fomenta o incremento de uma ideologia do êxito e de uma sociedade de vencedores e perdedores. Quero deixar claro que não tenho nenhuma posição de princípio preconcebida contra a competição em si mesma. Pelo contrário: toda a experiência histórica evidencia a importância da competição no desenvolvimento do processo econômico e no aprimoramento dos produtos. Nessa perspectiva, ela é mesmo a mola da economia. Ocorre, no entanto, que uma coisa é a competição limitada pela Lei (nos sentidos ético e jurídico do termo) e outra bem diferente é a competição no lugar da Lei.  É na medida em que a competição é a própria Lei, em que não há limite para a competição, que a Lei do Pai (o “Não” do Pai), no seu sentido simbólico a que se refere Lacan, revela seu caráter cada vez mais vacilante e evanescente nas sociedades contemporâneas. É nessa medida que a ideologia do “tudo é permitido” encontra solo fértil para vicejar. Resulta daí uma estruturação perversa das relações econômicas, nos moldes de um autêntico darwinismo social, em que vence sempre o mais forte. E o “mais forte”, tanto neste contexto quanto no mundo da natureza, é simplesmente o mais bem adaptado![3]O quadro que acabo de pintar permite perceber com clareza que a exclusão social é endêmica ao neoliberalismo. Longe de ser um mero “acidente de percurso”, ela faz parte da lógica interna do modelo neoliberal. A concentração da riqueza é a outra face da exclusão. Creio poder mesmo afirmar que a antiga oposição marxista opressores/oprimidos já não dá conta da atual divisão social. É preferível, hoje, recorrer à oposição incluídos/excluídos, em que os “incluídos” abrangeriam tanto os opressores quanto os oprimidos, e os “excluídos” compreenderiam aqueles que não têm inserção em nenhuma dimensão da vida social, não chegando sequer a poder ser rotulados como oprimidos pela simples razão de que ninguém se interessaria por oprimi-los, já que daí não retiraria qualquer proveito. Afinal, ser oprimido não deixa de ser uma forma de inclusão! Alguns talvez nem possam ser denominados “excluídos”, já que não há “de quê”, pois nunca foram incluídos em nada! São excluídos, antes de tudo, da própria cidadania. A propósito, em nome de que pretendemos que “eles” cumpram as “nossas” leis? Afinal, estamos num mundo em que imensas quantidades de pessoas “vivem sempre em estado de exceção, às voltas com dilemas em que é quase impossível saber se é mais justo obedecer à lei ou transgredi-la, se é mais compassivo guardar fidelidade a valores consagrados ou infringi-los em nome de um bem maior – o direito à vida e à dignidade”[4]. Trata-se, afinal, daqueles que já foram denominados os “bárbaros” contemporâneos. No limite do neoliberalismo, pode-se vislumbrar algo parecido com o estado de natureza hobbesiano, em que “todo homem é inimigo de todo homem”[5]. Não sei se as coisas chegarão a esse ponto. Mas tampouco sei o que se fará para evitar que elas cheguem! E nenhuma reação a esse estado de coisas é tão inadequada quanto a pura e simples resposta penal, como se vem adotando de modo crescente sob a forma da criminalização dos movimentos sociais. Do “Estado Providência” ao “Estado Penitência”: enquanto os “direitos garantidores” (trabalhistas, previdenciários etc.) mínguam, o Direito Penal se avoluma! Parece-me claro que o caminho é outro: o da afirmação dos direitos de cidadania e da implementação dos meios para lhes conferir efetividade. Observe-se, ainda, que, dentro do contexto de exclusão inerente ao modelo neoliberal, as políticas sociais adotadas para minorar um pouco a situação de miséria dos excluídos (bolsa-escola, bolsa-família e semelhantes), por mais bem intencionadas que sejam e por mais que, de fato, redistribuam um pouco melhor a renda e dinamizem a economia em lugares paupérrimos, não deixam de ser sobretudo medidas paliativas, de cunho paternalista, que não alteram o sistema de exclusão dominante. A estrutura permanece. Como observa José Nazar, “a ideia de um paternalismo já inclui, por si só, a presença de um povo carente, sofrido, injustiçado e necessitado – portanto, facilmente manipulável”[6]. E como diz Renato Mezan, “o discurso em favor dos ‘pobres’ representa um significativo recuo em relação ao que de melhor o PT havia trazido para a política brasileira: a ênfase nas noções de cidadania e de sujeito político”[7]. eficiência técnica é o terceiro elemento do tripé sobre o qual se estrutura o modelo neoliberal. Ela está, a rigor, a serviço da competição. É preciso ser eficiente para obter êxito na competição. Não basta competir; é preciso competir bem. Ora, no limite, assim como a ênfase à lei da competição conduz, como vimos, a um quadro de darwinismo social, a ênfase posta na eficiência técnica tende a legitimar a ideologia segundo a qual “os fins justificam os meios”. O agente adequado dessa eficiência técnica a serviço da competição é aquele que é extremamente capacitado quanto aos meios que emprega no seu trabalho, mas incapaz de avaliar criticamente os fins a que sua prática pode conduzir. Competência técnica e indiferença ética! Esses sujeitos (se assim posso chamá-los, pois frequentemente a eficácia técnica é adquirida ao custo de um profundo processo de dessubjetivação) dominam muito bem o “como” de sua prática. Mas raramente se questionam quanto ao “porquê”, ao “para quê”, ao “para quem” e ao “contra quem” essa prática é exercida. Conciliar ética e neoliberalismo é, afinal de contas, uma questão muito complicada. Como que numa antecipação daquilo que aqui estou chamando de “darwinismo social” e de “eficácia técnica a serviço da competição”, Albert Camus já se expressava assim no início da década de 1950: “Na falta de um valor mais alto que oriente, a ação dirigir-se-á para a eficácia imediata. Se nada é verdadeiro nem falso, bom ou mau, a regra será mostrar-se o mais eficaz, quer dizer, o mais forte. O mundo não estará mais dividido em justos e injustos, mas em senhores e escravos”[8].O que transparece no perfil do neoliberalismo que venho traçando é um fundamentalismo de Mercado, que estruturalmente não é tão diferente de qualquer outro fundamentalismo, como o islâmico, por exemplo. Cada qual com os seus deuses, e seus modos próprios de cultuá-los… Isso sem falar do fundamentalismo religioso (protestante) bastante arraigado na chamada “América profunda”, o qual, aliás, constitui um dos esteios do denominado “neoconservadorismo” e das práticas políticas daí decorrentes, inclusive muitas das ações do governo Bush nos Estados Unidos. E tudo isso no enquadramento do chamado “pensamento único”. Em ambos esses fundamentalismos, tem-se a pregnância de uma lógica maniqueísta, em que “o Mal” está sempre no outro… Essa lógica da economia de mercado, já formulada pelos economistas clássicos, sustenta, em síntese, que os indivíduos agem segundo seus interesses, que são conflitantes. O mercado é a “mão invisível” (expressão de Adam Smith) que harmoniza esse conflito. Segundo essa lógica, portanto, o livre mercado é condição para o indivíduo livre. A regulação da economia pelo mercado, nesse contexto, é uma “ordem natural” que determina as ações individuais, relativizando a soberania individual. As pessoas são educadas para internalizar essa lógica. Zygmunt Bauman diz que esse é o único exemplo bem-sucedido daquilo que os pedagogos chamam de “educação continuada”[9]. E como em toda ideologia, os agentes mais eficazes nessa “transmissão” são aqueles que por sua vez também a internalizaram: “Tendo internalizado a lógica do mercado neoliberal, a maior parte dos profissionais da imprensa adere livremente a suas exigências. Agem de forma orquestrada sem necessidade de se orquestrarem. Sua identidade de inspiração torna desnecessária a conspiração”[10]. Ora, toda a experiência histórica evidencia que o capitalismo, quando deixado entregue a si mesmo, ou seja, à sua lógica interna e à dinâmica das consequências dessa lógica, tende a produzir a alternância de grandes ciclos de prosperidade e ciclos de recessão ou mesmo de depressão econômica, cuja superação, sempre dolorosa, não pode prescindir da intervenção do Estado. A sociedade de mercado, isto é, a sociedade capitalista, não pode deixar de ser regulada pelo Estado. A profunda crise econômico-financeira que ora atravessamos em nível mundial (dezembro de 2008) resulta, entre várias outras razões, da regulação precária, ou mesmo da falta de regulação, que o neoliberalismo houve por bem “conceder” ao mercado financeiro, a pretexto de que assim ele cresceria mais. Pois bem, a bolha estourou!… E o Estado que nos acuda. Há mais de vinte anos, assistimos à dominância irrestrita desse modelo em escala mundial. Que consequências oriundas de tal dominância uma observação atenta dessa história recente pode nos indicar? Ou ainda, considerando-se que o neoliberalismo é um modelo de caráter essencialmente econômico, que efeitos foram provocados em outras dimensões da ordem social? Vou limitar-me a apontar somente as consequências que me parecem mais decisivas nos terrenos político, jurídico, ético e psicológico. No campo político, já está se tornando lugar-comum dizer que o neoliberalismo vem deslocando, em ritmo crescente, a soberania do Estado para o Mercado. É este último que decide em última instância – e talvez, se bem vistas as coisas, em todas as instâncias… Mesmo quando o Estado “socorre” o mercado em épocas de crise, injetando imensas quantias de dinheiro para “salvar” grandes empresas ou instituições financeiras, ele está, mais do que nunca, a serviço do mercado. Numa ordem capitalista, mais do que a serviço da classe dominante (como apontou MARX), o Estado está a serviço do próprio sistema, de sua manutenção e reprodução. Ainda no âmbito político, é bem sabido que duas das consequências do domínio do modelo sob exame são a conversão da chamada sociedade civil numa sociedade de mercado (a sociedade de consumo) e a transformação do cidadão em consumidor como o correspondente, no nível micropolítico, da migração da soberania do Estado para o Mercado, ocorrida no nível macropolítico. Ao contrário do liberalismo clássico, o neoliberalismo não parte de “indivíduos”, mas de “agentes econômicos”. Quem não acede ao registro de consumidor, nas sociedades atuais, com certeza não acede também ao registro de cidadão. Ora, como já observei no artigo referido na nota nº 3 acima, onde o cidadão se reduz ao consumidor, o ato por excelência de exercício da cidadania não pode ser outro senão fazer compras… E, por extensão, os locais por excelência desse exercício não podem ser outros senão os shopping centers, reais ou virtuais[11]! “A liberdade de mercado nos levou ao mercado da liberdade”[12]. Consumir a qualquer custo parece ser a “via régia” dos tempos que correm, o imperativo do Gozo no campo das relações econômicas. Nesse processo de produção, subjaz o pressuposto capitalista: “ninguém é insubstituível”. Logo, qualquer um é, em princípio, descartável. Para a Psicanálise, ao contrário, “ninguém é substituível” O êxito do consumismo, afinal de contas, pressupõe essa descartabilidade, bem como a prevalência de uma lógica individualista nas relações entre as pessoas. O Estado, a sociedade, as relações amorosas perdem toda qualidade essencial, todo atributo constante, todo “núcleo duro”, que lhes pudessem conferir identidade. Para a lógica neoliberal, tudo é mercadoria. Isso inclui as pessoas. Cada vez mais, estas se relacionam umas com as outras como se fossem objetos de consumo – descartáveis, como qualquer objeto produzido pela nova economia. É nesse contexto que Bauman constrói seu conceito de “liquidez”: “a incapacidade endêmica de nossa sociedade, e de qualquer parte dela, de manter sua forma por algum período de tempo”. Transcrevo, a seguir, trechos de uma entrevista em que esse importante sociólogo aborda aspectos e precondições de uma lógica consumista: “Como afirmou [o sociólogo] Ulrich Beck, hoje espera-se que os indivíduos construam individualmente, usando recursos individuais, soluções individuais para problemas comuns e produzidos socialmente. [A ‘bête noire’ da sociedade contemporânea] não [é] tanto o consumo (afinal, essa é a eterna necessidade de todo ser humano), mas o consumismo: a tendência a perceber o mundo como basicamente um enorme recipiente dos potenciais objetos de consumo e de moldar todas as relações humanas conforme o padrão de consumo. Assim, o outro (parceiro, amigo, vizinho, parente) é ‘bom’ desde que traga satisfação e pode (ou deve) ser descartado quando a satisfação acabe ou se mostre não tão boa quanto se esperava ou quanto a que outra pessoa talvez pudesse fornecer em seu lugar. Outros seres humanos se tornam descartáveis e facilmente substituíveis – como os bens de consumo são ou deveriam ser”[13]. O político – e, mais especificamente, o “estadista” –, por seu turno, vai sendo identificado, cada vez mais, ao gestor de negócios. Usa-se cada vez menos o termo “governante”, e cada vez mais a expressão “gestor público”. Assim como, no que tange à migração da soberania do Estado para o Mercado e à transformação do cidadão em consumidor, a economia vai ocupando o lugar que antes era da política, aqui é a administração que vai de modo crescente tomando esse lugar. Quem administra bem seus negócios privados é suposto, por isso mesmo, capaz de bem gerir a coisa pública.No que se refere ao campo jurídico, a dominância do modelo neoliberal tem acarretado consequências extremamente graves. Limito-me a apontar algumas das que me parecem as mais importantes: a) O neoliberalismo se caracteriza como uma dissolução dos direitos, sobretudo os trabalhistas, sociais e previdenciários, justamente aqueles aos quais o Estado Social deu ênfase, e que foram incluídos no rol dos direitos humanos[14]. A desconstitucionalização e a desregulamentação desses direitos são tidas como imprescindíveis à efetiva implantação do modelo neoliberal[15]. Um sintoma de tal espécie de política é o autodenominado “conservadorismo compassivo” que George W. Bush anunciou logo após sua posse para o primeiro mandato como presidente dos Estados Unidos, o qual tem como característica essencial a tendência do Estado no sentido de transferir a igrejas e organizações não-governamentais funções de assistência social que lhe são próprias e, por isso mesmo, indelegáveis. Lembremo-nos, a propósito, de que, no final da Guerra do Golfo, em 1992, o presidente George Bush, pai, referindo-se ao que para ele constituía o fim da era em que o Estado intervinha na economia mediante a adoção de políticas compensatórias das desigualdades sociais, proclamou: “O tempo de caridade acabou”! b) Há um enfraquecimento da função garantidora do Direito, tanto no que tange às “regras para o futuro”, como no que concerne à proteção dos direitos adquiridos (que transitam sutilmente para o patamar dos “privilégios”, sem que ninguém compreenda bem os “passos” desse trânsito nem perceba o perigo para a democracia e para a cidadania que há nisso). Se o Direito não pode garantir o que se consumou sob o império da lei atual, não pode, a rigor, garantir mais nada! Essa tendência contrasta amplamente com a tendência liberal clássica de declarar direitos, a qual levou Norberto Bobbio a falar de uma “Era dos direitos”. c) As garantias jurídicas, em consequência, vão sendo rapidamente substituídas pelas garantias de Mercado, este sim, o verdadeiro soberano. Muito mais que a ordem jurídica, é o interesse do empresário em manter a boa imagem de sua empresa que “garante” os direitos do consumidor. d) Nessa esteira também vai a diminuição do raio de ação do Judiciário, sobretudo no que concerne à internacionalização das normas jurídicas negociais, que se alçam acima dos direitos internos, ficando para os Estados “soberanos” a mera função de incorporá-las ao direito vigente (ou seja, a mera função de aderir). e) A própria lógica jurídica (o “modo jurídico” de pensar, por assim dizer) vai-se enfraquecendo e descontextualizando, à medida que vai sendo substituído pela lógica de mercado. Os direitos passam a ser vistos sobretudo pelo prisma de seu custo econômico, de modo que reduzir direitos se torna mera consequência da necessidade, imposta pela lógica de mercado, de reduzir custos. f) Com o recente incremento da ideologia da segurança e em nome do combate ao terrorismo, vê-se o rápido crescimento das restrições de direitos e do “estado de exceção” como aquilo que caracteriza propriamente a regra na condução da política de muitos Estados. O filósofo italiano Giorgio Agamben observa que uma das principais características de muitos Estados contemporâneos é constituírem-se, “mais do que como garantidores e administradores da ordem”, como “máquinas de produção e gestão da desordem – que permitem intervenções que lhes dão legitimidade e poder”. Nesse sentido, “no cerne de tal projeto está a compreensão da centralidade do estado de exceção enquanto paradigma de funcionamento das estruturas jurídicas que procuram normatizar o campo da política e da ação social. Que o espectro da ‘suspensão legal’ da lei, que o reconhecimento da lei que pode conviver com sua própria suspensão seja o ‘motor imóvel’ das democracias contemporâneas: eis algo que Benjamin indicara, mas que Agamben soube explorar como ninguém antes dele. Contribuiu para isso o estado atual do mundo, onde os governos são cada vez mais marcados pela lógica da segurança e da guerra infinita. […] Em um de seus cursos no Collège de France, Michel Foucault mostrou como funciona a segurança enquanto paradigma de governo. […] Não se tratava, por exemplo, de prevenir as grandes penúrias, mas de deixá-las ocorrer para, em seguida, dirigi-las e orientar os modos de atravessá-las. A segurança como paradigma de governo não nasce para instaurar a ordem, mas para governar a desordem. É neste sentido que a segurança, juntamente com o estado de exceção, é o paradigma fundamental da política mundial. […] Parece evidente que este é o princípio que guia, particularmente, a política exterior norte-americana, mas não apenas ela. Trata-se de criar zonas de desordem permanente que permitem intervenções constantes orientadas pela direção que se julgar útil. Ou seja, os Estados Unidos são hoje uma gigantesca máquina de produção e gestão da desordem”[16]. g) Falando dessa temática da crescente necessidade de muitos Estados contemporâneos no sentido de restringir direitos em nome de garantir a segurança (sendo que, muitas vezes, foram eles próprios que geraram ou ampliaram as situações de insegurança para depois manipulá-las politicamente), assim se manifesta Bauman: “A incerteza, o medo do desconhecido, das ameaças imprevisíveis e inomináveis ao corpo humano, à propriedade, ao esquema de vida são uma matéria-prima facilmente reciclada em capital político. A promessa de ‘ser duro’ com criminosos, estranhos, imigrantes, mendigos e todas as outras pessoas vistas como incômodos e potenciais perigos se torna uma arma preferida em disputas políticas. Os governos são capazes de aparecer como guardiões da segurança e salvadores de catástrofes indizíveis, que, de outro modo, sem sua vigilância e empenho, poderiam afetar seus súditos, enquanto os partidos de oposição desenvolvem um ‘benefício próprio’ ao convencer os cidadãos de que os verdadeiros perigos são muito maiores do que os governos deixam perceber. Jogar com os sentimentos de insegurança e os medos resultantes se torna hoje o principal veículo de dominação política”[1 Por fim, no que concerne aos terrenos ético e psicológico – que se me afiguram indissociáveis por estarem referidos, ambos, ao nível da subjetividade e que, por isso mesmo, serão considerados em conjunto –, parto do princípio de que o próprio campo da ética (o qual, na Psicanálise, é articulado por referência a um sujeito do desejo) se constitui a partir da colocação de uma barra à vigência irrestrita do gozo. Lacan já advertira para o fato de que “a moral […] consiste primordialmente – como Freud percebeu, articulou e nunca variou, ao contrário de diversos moralistas clássicos, até mesmo tradicionais, até mesmo socialistas – na frustração de um gozo, colocado como lei aparentemente ávida” [18]Ora, pode-se dizer que, contrariamente a isso, toda a ideologia consumista própria ao modelo neoliberal se constitui a partir de um imperativo do Gozo. O que se tem aqui é algo como uma substituição da Lei (do “Não” do Pai[19], que, colocando um limite à vigência do gozo, abre a possibilidade de acesso ao desejo e funda o campo da ética) pelo imperativo de gozar a qualquer preço. “O universo dos bens e a lógica do consumo capitalista dificultam o acesso do sujeito à experiência do desejo, substituindo essa experiência pela experiência do gozo. O desejo, por sua íntima articulação à Lei, porta necessariamente a barra, o limite ao gozo. Em contrapartida, a lógica do consumo propõe, de forma clara ou escamoteada, que tudo é possível, atrelando o sujeito à promessa de um gozo infinito. Nesse sentido, há uma relação entre a lógica do consumo, característica do capitalismo, e o supereu. Ambos promovem a mesma imposição à voracidade ilimitada: quanto mais é oferecido, maior a demanda, criando-se assim uma condição de permanente insaciabilidade”[20]. Ambos decretam: “Goza”! Esse imperativo do gozo, que acarreta a ilusão de preenchimento da falta e traz a promessa de uma felicidade sem restrições, é um esteio indispensável ao consumismo que caracteriza o funcionamento da economia nas sociedades contemporâneas. A felicidade é cada vez mais referida ao consumo. Consumir equivale a tamponar a falta, que é a precondição do desejo e, nessa perspectiva, constitutiva do sujeito humano. O imperativo ético vai sendo substituído pelo imperativo do gozo. É o triunfo do gozo sobre o desejo. Como diz José Nazar, “a ilusão é a grande mercadoria, a base de sustentação do que pode haver de perverso e excessivo no discurso capitalista, discurso político e discurso religioso. […] A oferta de ilusões enriquece a todos”[21].Melman destaca algumas consequências, tanto na esfera política quanto na das relações amorosas e sexuais, dessa espécie de ideologia: “O que hoje nos é oferecido é experimentar gozos diversos, explorar todas as situações. É esse o verdadeiro liberalismo, o liberalismo psíquico!”[22]. Em entrevista concedida em 2004 à revista Isto É, ele especifica um pouco mais esta questão: “Cada um pode satisfazer publicamente suas paixões contando com o reconhecimento social, incluindo as mudanças de sexo. Há uma formidável liberdade, mas ela é estéril para o pensamento. Nunca se pensou tão pouco. O trabalho do pensamento é comandado por aquilo que produz obstáculo. Mas nada mais representa obstáculo, não sabemos o que há para pensar. O sujeito não é mais dividido, não se interroga sobre sua própria existência. Como faltam referências, o indivíduo se vê exposto, frágil e deprimido, necessitando sempre da confirmação externa. Assim, o eu pode se ver murcho, em queda livre, gerando uma frequência de estados depressivos diversos. […] O sexo realmente se banalizou. É encarado como uma necessidade, já que caiu por terra o limite que o tornava sagrado. Quando se fala em liberação sexual, não se fala mais do desejo. O homem contemporâneo trata o desejo sexual, de certa forma, como simples atividade corporal. A nova economia psíquica faz do sexo uma mercadoria entre outras”[23]. Parece-me bastante oportuno evocar, a esta altura, uma notável observação de Freud em um dos seus artigos sobre a psicologia do amor, em que ele articula o incremento do desejo sexual nos seres humanos, não à ausência de limites ao exercício da sexualidade, mas, pelo contrário, à existência deles: “Para intensificar a libido, se requer um obstáculo; e onde as resistências naturais à satisfação não foram suficientes, o homem sempre ergueu outros, convencionais, a fim de poder gozar o amor. Isto se aplica tanto aos indivíduos como às nações. Nas épocas em que não havia dificuldades que impedissem a satisfação sexual, como, talvez, durante o declínio das antigas civilizações, o amor tornava-se sem valor e a vida vazia; eram necessárias poderosas formações reativas para restaurar os valores afetivos indispensáveis” [24]. O grande mito contemporâneo, que sustenta a lógica do consumo atrelada ao imperativo do gozo, acima descrita, é o de que a Coisa existe! Predomina nesse processo de constituição da voragem do consumidor a identificação narcísica, com tudo o que esta contém de mortífero para o desejo. Acredita-se que é possível suprir tudo. Ora, “se há, pois, descoberta de FREUD é a seguinte: nossa relação com o mundo e com nós mesmos não é instalada por um objeto, mas pela falta de um objeto. […] É preciso, para esse infeliz sujeito humano, passar por essa perda a fim de ter acesso a um mundo de representação sustentável para ele, em que seu desejo seja simultaneamente alimentado e orientado e suas identificações sexuais quase asseguradas”[25]. O assujeitamento à Lei supõe precisamente o reconhecimento de que a Coisa não existe! O grande paradoxo do ser humano, que FREUD genialmente apontou, é o mal-estar no bem-estar (e vice-versa). Não é possível “curar” essa ferida! “A condição humana não tem cura”, já dissera Hélio Pellegrino[26]. O mal-estar é constitutivo e, por isso mesmo, ineliminável. Resta-nos, então, elaborá-lo! Poder-se-ia ter, então, uma ética neoliberal? Mas será que dá para chamar isso de “ética”, sobretudo quando se sabe que toda a tessitura das relações de consumo está voltada para aquela lógica superegóica que se articula a partir do imperativo do gozo? É possível encontrar nesse imperativo algo de ético? Estas questões ficam, por ora, em aberto, à espera de novas articulações…

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