segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Arte de curar, arte para viver (II)

Por Natalino Salgado Filho
Natalino Salgado enumera filmes com temática ligada ao exercício da Medicina
Iniciei esta série de artigos falando da importância da arte para a formação médica, quiçá para seu pleno desenvolvimento. No artigo anterior, discorri acerca de algumas formas de expressão e quero considerada a sétima arte, qual seja, o cinema, bem como tecer algumas considerações acerca da literatura.
Na tela grande, os profissionais da Medicina já foram retratados das mais diversas formas. Um dos mais famosos de todos os tempos é “Patch Adams – o amor é contagioso”, interpretado pelo ator Robin Williams, que interpreta o médico com métodos pouco convencionais e com profunda compaixão pelo paciente, que faz a diferença e influencia um sem-número de outros profissionais. Outro filme marcante, intitulado Um golpe do destino, traz o personagem médico vivido por William Hurt, que tem a chance de rever sua própria escolha profissional ao se deparar portador de uma grave doença. E o que dizer de Mãos talentosas, que conta a história do médico Ben Carson? Sem dúvida, uma grande inspiração para os discípulos de Hipócrates.
Na literatura, invoco a memória de Anton Tchekhov, dramaturgo e escritor russo reconhecido mundialmente. Ele chegou a declarar que a medicina era sua legítima esposa, e a literatura, sua amante. Khaled Hosseini, Moacyr Scliar e Drauzio Varela são provas vivas de que as mesmas mãos que manejam o estetoscópio são capazes de prodígios também, quando manejam a caneta ou o teclado do computador.
É inconteste: para além do ofício de aliviar dores e curar males, os médicos e demais profissionais da área de saúde não podem e nem devem perder a capacidade de olhar com os olhos da alma, a ouvir, mesmo quando não há nada a ser escutado. Rubem Alves, em seu “Variações sobre o prazer”, faz a distinção, num diálogo extremamente interessante, dos médicos que apenas dão o remédio e daqueles que falam para curar. Para aqueles que, como eu, abraçaram como ofício a escuta prescrutante das agruras do paciente, a sisudez dos ambientes hospitalares e as adversidades indesejadas que chegam sem avisar, o refúgio da arte é um oásis que deve ser cultivado e celebrado.
Quia non in pane solo vivet homo…nem só de pão vive o homem, retruca Jesus ao diabo, quando este, aferrado à concretude, pensa que pode conquistar o Mestre, a ceder ao seu apelo de matéria, num episódio narrado com detalhes no Evangelho de São Lucas. Para além da vida com seu labor ordinário, a literatura nos propicia o alcance de uma existência perene, cristalizada nos escritos, na memória desta e das futuras gerações. O bem e a vida confundem-se, pensa Ivan Ilitch, personagem de Tólstoi, no conto que leva o nome daquele.
Em nosso mister profissional, tocou-nos cuidar de nossos semelhantes, mas a formação acadêmica, como se quisesse nos proteger das agruras e dores alheias e nossas, deu-nos o olhar dito científico. Aquele que olha a coisa, em vez do homem; a doença, em vez da pessoa e a ação terapêutica, em vez da alma. Devemos realizar tudo isso, porém, sem esquecer aquelas. A literatura é este caminho de humanização que a nós dá não uma fuga ou falsa proteção, mas o sentimento de completude em nosso fazer.
Lembro outra famosa obra, esta cristalizada tanto na literatura, como no cinema. Trata-se de “O médico e o monstro”, um dos maiores clássicos de todos os tempos, de Robert Louis Stevenson. O educado médico Jekyll carrega consigo o horrível Mr. Hyde, uma metáfora da fera interior que todo homem não pode esquecer que deve mantê-la sob seu comando e domínio.
Enfim, não há desculpas para manter-nos afastados desse mundo fascinante, sobre o qual acabo de discorrer, ainda que breve. Acredito na literatura como expressão de salvação do labor cotidiano. E no cinema, que possui a mágica de nos transportar para outro mundo. A arte, nessas formas expressas, harmoniza incongruências, forja sentidos, melhora nosso projeto de ser e nos proporciona novos olhares sobre nós mesmos e sobre os outros.
*Médico, doutor em Nefrologia, ex-reitor da UFMA, membro da ANM, da AML, da AMM, Sobrames e do IHGMA

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