quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A lavajatolatria, o Carnaval e os Habeas Corpus de Gilmar Mendes

 
Por Lenio Luiz Streck
O professor Rogerio Dultra escreveu texto respondendo a uma indagação minha (ver aqui) e cunhou uma expressão interessante: o jurista lava-jato, que nasceu com as características que simbolizam esse imaginário punitivista, em que a moral substitui o Direito e em que os fins justificam os meios. Enfim, o jurista lava-jato assume um lado: o de que os argumentos morais e políticos (que, ao fim e ao cabo, são moralismos) valem mais do que a própria Constituição.
Não é por nada que parcela da comunidade jurídica apoia atos de exceção. Já existe até a “jurisprudência da crise”. Existe também a “jurisprudência de exceção”. Resumindo: é o populismo que rima com punitivismo. Dedo longo, o jurista lava-jato funciona como o novo tipo-ideal do Direito: aponta o culpado e depois sai buscando narrativas (pós-verdades) para cobrir o gap entre o fato e a versão construída finalisticamente. Em suma: forjou-se uma lavajatolatria. E isso pega. E vira violência simbólica.
Delegados já indiciam políticos por intuição (sic) (ver aqui). Juízes negam o direito ao silêncio (aqui). Membros do Ministério Público negando o direito ao silêncio (vejam o vídeo a partir do minuto 22, em que o destemido advogado Alberto Zacharias Toron enfrenta de frente mais um ato dessa imensa peça do autoritarismo brasileiro). Prende-se com base em enunciados feitos em workshop (a ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça, teve que detonar um deles, por liminar) (ver aqui). Eis o “espírito desta época”, o Zeitgeist da “wäscht schnell” (lava rápido ou “a jato”). Para quem não entendeu: a lavajatolatria se transformou em uma ideologia (ou em uma “teoria” política de poder); e, assim, quem mais sofrerá são aqueles que menos condições tem de se defender. Eis o paradoxo dessa postura.
Também dia desses ouvi um jurista com esse perfil dizer em palestra, vestido a rigor: “não há verdades; tudo é relativo; a verdade é a verdade da justiça” — e todos aplaudiram. Para começar, o autor é um mentiroso confesso, porque se não há verdades, o que ele acabou de dizer também não é verdadeiro. O que está por trás desse tipo de afirmação? Simples: é que, por não existirem verdades, tudo pode ser dito. Tudo é narrativa. Logo, a prova judicial será uma narrativa. Crença. Ou probabilismo. E será verdadeiro aquilo que a vontade de poder dirá. Um neohumptydumptysmo (Alice Através do Espelho), em que o intérprete dá às palavras o sentido que quer.
É o que está por trás também das narrativas que se vendem sobre a concessão de Habeas Corpus pelo Supremo Tribunal Federal. Neste momento, a bola da vez é o ministro Gilmar Mendes. Criam-se pós-verdades tipo “HC é ruim; HC é para abastados; HC é igual à impunidade”. Resultado: as narrativas se transformam em enunciados auto evidentes-indiscutíveis.
As pós-verdades, repetidas ad nauseam, viram verdades “apodíticas”. Viram até marchinhas de Carnaval, como uma que está fazendo sucesso. Nela, a pretexto de fazer blague, o pandeguismo do autor da marchinha rompe o cabo da boa fé (ou boa esperança do direito e do direito de personalidade) e faz acusação de corrupção. Alguém dirá: é engraçado. Também achei. Mas, no Brasil, o protesto vira impostura. Nada de Bakhtin; aqui é linear. O que não está dito na marchinha? Simples: um país de torcedores obnubila o cerne da discussão.
Explico: o que se esconde (e o autor da marchinha pode nem se dar conta) é o relevante fato de saber o que é um HC e se é verdadeiro dizer que os Habeas Corpus do STF (no caso da marchinha, especialmente os deferidos por Gilmar) são “tão assim para os ricos” (sic) e como se eles tivessem sido deferidos indevidamente. Repito o que venho dizendo: quem vibra com gol de mão não pode se queixar se seu time perder com gol de mão. Concedeu HC para político ou para alguém abastado? Culpado de antemão. É pena que a comunidade jurídica apenas torce. E para torcer, distorce.
Então, para mostrar alguns números e dizer para os galhofeiros de momo que HC é coisa séria e é melhor um HC concedido de forma indevida do que negar, por moral ou política, um HC devido, informo que entre 2009 e 2017 o Supremo Tribunal Federal concedeu 4.018 HCs. A 2ª turma, em que está o ministro “muso” do Carnaval, foi a que mais concedeu: 1.477.
Será que o carvalesco autor da pândega marchinha sabia que a maioria dos Habeas Corpus de mães com filhos menores de 12 anos foram concedidos pelo ministro Gilmar Mendes? Muitos de forma monocrática. Os exemplos são muitos. O que dizer do HC 141.201 (furto de uma correntinha avaliada em R$ 15)? E da tentativa de furto de uma barra de chocolate (HC 141.410)? Furto de 18 tijolos (HC 139.248), no valor de meia dúzia de mirreis? Isso daria marchinha, não? “Iscondoô lelê, furtou uns tijolinhos para construir seu puxadinho e foi emparedado…”. E do furto de roupas em varal (HC 127.266)? Céus. Como isso chegou ao STF? Isso tudo daria uma boa marchinha de Carnaval. Alô, alô, justiça, por que tem 726 mil presos no Brasil, dos quais 280 mil ainda não foram julgados?
Caros leitores: se destes “cautelares” 20% tiverem problemas de prazo, fundamentação e quejandos, estamos devendo, nada mais, nada menos, do que 56 mil HCs. Isso não dá marchinha. Dá um enredo: “A tragédia dos presídios no reino do punitivismo”. Bingo.
Já sem argumentos, alguém dirá, desviando o assunto: “mas conceder HC com base em insignificância incentiva o crime”. É? Então o puritanismo e o moralismo parecem não ter limites. Ninguém estaciona em lugar proibido, compra mercadorias no exterior e não declara na alfândega (é crime!), não declara no Imposto de Renda alguns dinheiros (baita crime) e por aí afora? Hein? Mas o furto insignificante é muito mais grave do que sonegar, certo? Sorry pelo sarcasmo.
No imaginário forjado nestes tempos difíceis, essa pergunta deixa de ser respondida, ficando escondida no meio das notas musicais e dos risos tortos dos torcedores de um país que trocou o direito pela moral. E por aí afora. Putz: ia esquecendo do furto de sucata (HC 126.866), avaliada em incríveis R$ 4… Pois é. Isso — também — chegou ao STF. “Salve a Defensoria aí gente — chora cavaco”! “Isquindô”. E chegou no STF porque alguém negou. Muitos negaram antes. Que hit para o Carnaval, não? Furtou uma sucata e parou no xilindró…Eeeoô…
Mais um pouquinho de luz sobre o problema da liberdade (sim, senhores, HC diz respeito à… liberdade!!!!) no Brasil: vejam os casos de gestantes e lactantes presas, com HC deferido pelo “ministro muso” (HC 134.104; HC 134.069; HC 133.177; HC 131.760; HC 130.152; HC 128.381; HC 142.593; HC 142.279). Isso nem marchinha dá. Dá novela das oito, com muito choro. Imaginem a cena de uma mãe afastada do filho com grades no meio… e uma música de fundo. Quem aguentaria? Aliás, até acho que deveríamos ter fundo musical no cotidiano. Choramos em filmes e não nos importamos com as injustiças do cotidiano. Imaginem uma audiência de custódia com a sonoplastia da Globo…
Para se ter uma ideia da dramaticidade do problema do punitivismo no país, chegou a haver divergência na discussão sobre se o STF deveria ou não conceder HC em um caso de furto de chocolate avaliado em R$ 16 (bom, justiça seja feita, era chocolate ao leite). Não é fácil fazer Direito no Brasil.
Não devemos esquecer, aqui, o trabalho da Defensoria Pública. Esses habeas dos pobres são todos levado ao STF pela valente Defensoria. Nem estou falando dos HCs de outros crimes (vejam a importância dos números da Defensoria de São Paulo, citados na discussão da presunção da inocência – ADCs 43 e 44).
O que quero deixar claro é que eu poderia escrever sobre o mesmo assunto e invocar outros ministros da Suprema Corte, que votaram concedendo esses mais de 4 mil HCs nesses anos (poderia falar de votos exemplares dos ministros Marco Aurélio, Lewandowski, Toffoli, etc).
No caso, pesquisei os números e os exemplos dos HCs deferidos pelo ministro Gilmar Mendes, justamente porque é ele o g(l)osado pela já — agora famosa — marchinha momesca. Ouvi-a e fiquei intrigado. Fui atrás dos números para que eles falassem um pouco sobre essa intrincada temática. Querem fazer galhofas com a liberdade? OK. Façam com os HCs negados. Entrevistem os reclusos. Como disse, estamos devendo no mínimo 56 mil habeas corpus. Tem cada história… Com certeza, não dá nenhum iscondô.
O interessante é que, hoje, o juiz ou tribunal, para conceder HC, sente vergonha e tem medo da opinião pública (quem é ela, afinal?). Teme-se também o primeiro comentário (eles sempre sabem antes de todos) disparado pela Globo News (que só se interessa, é claro, se o réu for rico). Na escala “Richter-Raiva” de terremotos discursivos, dos jus filósofos Merval e Camarotti, uma concessão de HC alcança facilmente os 8 pontos dessa escala.
O que os críticos-torcedores esquecem é que, para um HC chegar ao STF, corre muita água. Ah, se os carnavalescos e os demais torcedores (juristas ou leigos) soubessem a tragédia que é direito criminal no Brasil… (sim, sei da violência que atinge principalmente os pobres; mas não é por causa de HCs; e não é por causa das garantias constitucionais). As causas são outras. E isso não dá marchinha.
Se os críticos-torcedores conhecessem os números sobre os HCs julgados (e sistematicamente negados) em determinados tribunais (lembram de uma desembargadora que disse nunca ter concedido liminar em HC? Disse com orgulho!)? Ah, se soubessem que o impetrante tem de ultrapassar muitos obstáculos, como a malsinada Súmula 691? E mesmo assim o STF concede milhares de HCs. Os obstáculos para o conhecimento de HC no STF são tão grandes que, por vezes, o STF não conhece… mas concede de ofício, a ponto de alguns réus torcerem pelo não conhecimento e que uma boa alma lhe conceda o remédio heroico… de ofício. Bingo.
Volto à lavajatolatria. Depois de um certo momento, espalhou-se, no país, a onda de que garantias processuais geram impunidade. Mais: Defender acusados se confunde com “bandidolatria” (sic). Sugiro o filme A Ponte dos Espiões (ver meu texto sobre o filme aqui – o fator Stoic Mujic), em que o filho pergunta ao pai que defende um acusado de ser espião comunista nos EUA na guerra fria: “— Pai, você é comunista?” E o pai responde: “— Estou apenas fazendo o meu trabalho”. Depois, o espião pergunta ao advogado: “— Você nunca me perguntou se eu era inocente”. E ele responde: “— Não me importa. Faço o meu trabalho”.
No neoimaginário que se instaurou, algumas autoridades acham que o Direito é um caminho longo demais e que as garantias só atrapalham. Pela ideologia da “lava jato”, é proibido conceder HC. E todos são culpados até prova em contrário. Quer dizer, por vezes, nem isso adianta. Tempos de pós-verdades. Pós-verdade é como fake news. Ora, crime é coisa ruim. Todos somos contra a corrupção, tráfico de drogas, assaltos… Quem seria a favor, a não ser os criminosos? Só que, em qualquer democracia, crime se combate a partir da lei. Inclusive com concessão de HC.
Se as garantias são indevidas, não é o Judiciário que vai dizer. E nem o MP. Aliás, nem o legislador pode reduzir as garantias constitucionais. Sabem por quê? Porque a Constituição, que é um remédio contra maiorias, não permite. Ah, então a culpa é da Constituição. Maldita Constituição. Rasguemo-la. Pois é. Quem odeia a Constituição Federal facilmente se submete ao látego da ditadura. Bom, deve ter gente com saudade. Espero que isso não dê marchinha.
Post scriptum: desculpem, está um pouco longa a coluna. Assumo o risco de fracassar, porque textos longos não são lidos em tempos de pós-modernidade e pós-verdades. Só quero dizer, ainda, que, em 1964, a tentação do arbítrio venceu o Direito. Na época, até a OAB não resistiu. Deu no que deu. Fazer atalhos encurta o caminho, mas pode dar no abismo. Por que é tão difícil aprender com a história?
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Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

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