sábado, 20 de julho de 2019

LIMITES À ATUAÇÃO DO JUIZ – POR AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO


Um dos temas mais importantes a exigir reflexão crítica nos tempos presentes é o dos limites ao poder de ação do Judiciário, os quais se impõem a partir da Constituição Federal, das leis e dos princípios jurídicos que regem uma sociedade democrática. Confesso que fico um tanto surpreso comigo mesmo, vendo-me fazer um discurso com um pé no legalismo. Mas me vem à lembrança uma expressão de Lenio Streck, quando ele diz que nos tempos atuais ser legalista é ser revolucionário. Logo eu, que ativamente participei, há mais de vinte e cinco anos, do Movimento de Direito Alternativo, que questionava a primazia do direito legislado, oficial, emanado do Estado, sobre outras modalidades de produção de normas jurídicas, mais informais, emanadas da sociedade. Esse movimento incluía o que se chamou de uso alternativo do direito, cujo protagonista era o juiz, a quem se atribuía a função de “corrigir” a lei no sentido de aplicá-la com maior grau de justiça social e de equidade. Mas também me vem à lembrança, muito claramente, que nenhum de nós, participantes daquele movimento, propunha qualquer extensão das teses do direito alternativo ao terreno do direito penal, exceto nos casos em que tal extensão fosse benéfica ao acusado ou condenado. A questão do direito alternativo tinha mais a ver, para nós, com a garantia dos direitos humanos, fundamentais, e dos direitos sociais, como o direito do trabalho, o direito previdenciário, os direitos de caráter mais “protetivo”, em suma. Nesse âmbito, o juiz precisaria orientar a sua prática no sentido de contrabalançar uma balança que sempre pendia para o lado do mais forte. Essa necessidade está presente na própria origem do direito do trabalho, que surgiu para compensar um pouco a disparidade de poder existente nas relações entre empregadores e empregados.



Dentro da temática que escolhi para esta exposição, isto é, a necessidade de explicitar e justificar certos limites ao exercício da função judicante, começo com quatro pequenas reflexões, na tentativa de inserir as coisas no seu contexto, para que pensemos a questão dentro de um contexto mais amplo, bem contemporâneo, um contexto em grande parte orwelliano, em que vivemos.

Em primeiro lugar, consideremos que não é à toa que um programa de televisão como o “Big Brother Brasil”, da rede Globo, faz tanto sucesso no imaginário social enquanto encenação performática daquilo que todos vivenciamos, também performaticamente em certo sentido, aqui do “lado de fora”. Quando chegamos aos mais diversos ambientes, encontramos a advertência já tão corriqueira: Sorria (eu abro aqui um parêntese para colocar: ou, se preferir, chore), você está sendo filmado! Prefiro traduzir a expressão orwelliana “Big Brother is watching you” por “O Grande Irmão está de olho em você”, e não por “O Grande Irmão zela (ou vela) por você”, como é habitual. Vivemos realmente, cada vez mais, o panoptismo que permeia a distopia 1984. E, ao contrário do que George Orwell possa ter imaginado, dificilmente ficamos chocados ou indignados com isso. Parece-nos quase “natural” que assim seja. Afinal, é para a nossa segurança... Vivemos a era da vigilância difusa, consentida e desejada. A exposição da privacidade se tornou um valor: se não sou visto, se não estou na “rede”, então não existo. Ora, onde não houver, como uma espécie de “cláusula pétrea”, um quantum de privacidade no interior do qual ninguém, nem mesmo o soberano, possa entrar – ressalvadas as necessariamente mínimas exceções previstas em lei –; onde esse nicho último de liberdade em que seja garantido ao indivíduo ficar a salvo da incidência do olhar do outro (e também da sua escuta) não existir; ou, ainda, onde não houver demarcação entre o público e o privado, é impossível, por definição, haver uma democracia. O mundo privado supõe que o olhar e a escuta do outro estejam “privados” de ultrapassar certos limites. Numa democracia o que precisa ser transparente é o espaço público, o espaço do poder e do seu exercício[1]. O mundo privado é o mundo que veda a intrusão do outro. É aquela fronteira, por mínima que seja, que a incidência do olhar, da escuta, da interferência do outro está privada de ultrapassar; é nesse sentido que eu entendo o privado aqui. Essa é, então, uma primeira reflexão que faço, esse mundo transparente, mas apenas para nós que estamos debaixo do olhar do outro, não para o outro que está atrás da câmera e que nos observa sem ser observado. Somos transparentes para esse Outro, que no entanto é opaco para nós. Esse talvez seja o mais eficaz exercício de poder, a mais eficiente forma de controle a que estão submetidas as sociedades contemporâneas.

Um segundo ponto que eu gostaria de destacar, e que de certo modo decorre do anterior, é que algo está mudando nas ditaduras. Se o controle é cada vez mais difuso, se o sujeito pode ser acompanhado em tempo real, vinte e quatro horas por dia, através do seu celular, da sua conta na internet, dos seus cartões de crédito etc., então cada vez menos (pela própria lógica do sistema) será preciso confinar as pessoas. Todos já estamos numa prisão virtual, transparentes aos poderes que controlam. Com isso, a figura do Ditador vai se tornando supérflua e desnecessária. Isso tem a ver com a forma pela qual as ditaduras contemporâneas vêm sutilmente nascendo e se impondo. Os golpes armados, com todo um aparato militar para dar-lhes sustentação, vão ficando obsoletos. São muito mais eficazes os golpes “legais”, desferidos sem a necessidade de derramamento de sangue, mediante os quais governos legitimamente instituídos são derrubados por meio do próprio sistema legal vigente, através de suas brechas, de uma interpretação extensiva e capciosa de normas legais e constitucionais, com o que o golpe se consuma camuflado em cumprimento da lei. É o que se tem visto ultimamente na América Latina, em países como Honduras, Paraguai e, mais recentemente, o Brasil.
Uma terceira observação eu apresento sob a forma da seguinte pergunta: O que vocês acham mais grave, deixar impune um culpado ou condenar um inocente? Essa é a minha pergunta-chave, minha pergunta crucial. Será em torno dessa questão, dessa escolha ética, por assim dizer, que orientarei a minha exposição. Quando dizemos, em nome, por exemplo, de um pretenso “combate à impunidade”, ou “combate à corrupção”, que é melhor que eventualmente um inocente venha a ser punido, que isso é um acidente de percurso, um mal menor às vezes inevitável para que se alcance o bem maior, nunca pensamos que sejamos nós esse inocente, ou algum parente nosso, ou alguém que nos seja caro. Será sempre para nós, implicitamente, um outro distanciado de nós socialmente: um favelado, um preto, um travesti, um daqueles por cuja perda não fazemos luto. Não se trata, aqui, de uma simples opção entre dois modelos, um garantista e outro punitivista, mas de uma escolha ética profunda, que inclui não somente a questão em si como também seus pressupostos. Se você respondeu que é preferível deixar um culpado impune a condenar um inocente, então, necessariamente, você abraça o princípio da presunção de inocência. Ora, isso tem consequências. Talvez a mais importante delas seja a seguinte: você pode ter certeza de que alguém é culpado, mas se não puder provar, ou se a prova de que você dispuser for ilícita, você terá que absolver, ao invés de condenar. Daí decorre, evidentemente, que o ônus da prova cabe a quem acusa. Caso contrário, o seu julgamento não será jurídico, mas moral, ou político, ou simples questão de opinião, ainda que revestida do manto da convicção.
E uma quarta questão preliminar vai sob a forma desta provocação: Perante uma situação extrema de iminente perigo coletivo, tortura-se ou não aquele que é o único que pode dar uma informação precisa com base na qual esse perigo possa ser conjurado? Em outras palavras, os fins podem justificar os meios? Se admitirmos uma exceção nesse caso singular extremo (como, até mesmo por uma questão de sobrevivência, de um bem maior a ser preservado, tendemos a admitir), ainda poderemos construir um conceito geral que dê conta dessa questão? E que consistência, que “universalidade” terá esse conceito, já que não mais será possível escamotear aquela exceção fundante? Uma coisa é afirmar a necessidade da exceção numa situação concreta extrema; outra coisa é elevar essa exceção a uma dimensão de universalidade, ou de habitualidade. Aliás, quando alguém me põe a questão do universal, eu pergunto assim: universal em que universo? Nossos mais caros princípios, que nos parecem condições de possibilidade da própria civilização, não são universais para além do nosso universo, que os constitui e é constituído a partir deles. No universo do Estado Islâmico, por exemplo, a universalidade ancorada em dogmas de fé, cegamente afirmados e seguidos, pode apresentar-se como radicalmente oposta à nossa, que é fundada numa razão iluminista e em aquisições éticas – e seus seguidores verão tanta “universalidade” nos seus princípios quanto a vemos nos nossos.
Agora eu vou colocar alguns dos meus pressupostos, e para isso não poderei deixar de invocar coisas que têm sido muito batidas e repetidas, nessa saturação de argumentos pró e contra o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Os que são favoráveis argumentam, em síntese, que ela cometeu, sim, crime de responsabilidade, e como tal apontam as chamadas “pedaladas fiscais”, a forma como recursos públicos teriam sido usados no Plano Safra e no custeio de programas sociais do governo, e alguns denunciam o que chamam de “estelionato eleitoral” que consistiria na discrepância entre a plataforma de campanha da reeleição da presidenta em 2014 e o programa contrário a isso que a situação econômica do país, desde antes por ela conhecida, a teria obrigado a implantar logo após a posse. Afirmam que o julgamento não é apenas jurídico, mas também político, apelam ao que denominam “conjunto da obra” e consequentemente sustentam que é legítimo que ela tenha o seu mandato cassado. Os contrários à destituição da presidenta, por seu turno, dizem que não é nada disso, que, embora o impeachment seja um julgamento também político, se ele não tiver respaldo jurídico no sentido estrito do cometimento de crime claramente tipificado como de responsabilidade, ele perde a sua legitimidade política, porque nós não estamos no parlamentarismo, em que se admite a perda do mandato por quebra da confiança da maioria parlamentar, mas sim no presidencialismo, no qual, a não ser que haja comprovadamente um crime de responsabilidade, doloso e comissivo, o máximo que se pode fazer é votar em outro candidato na eleição seguinte. Mesmo os muitos que, como eu, reconhecem que o governo de Dilma Rousseff foi desastroso, conduzido com alto grau de incompetência política e administrativa e diretamente responsável por grande parte da imensa crise econômica que o país atravessa, ainda assim recusam legitimidade ao impeachment em razão da falta de comprovação inequívoca da prática de crime de responsabilidade. Esses argumentos têm sido repetidos à exaustão, e isso vai conduzindo a um esvaziamento de sentido. Trava-se assim, na imprensa, na sociedade, nas academias, nos partidos, no parlamento, e mesmo no interior das famílias, um verdadeiro diálogo de surdos, em que cada facção está plenamente convencida da veracidade dos seus argumentos e simplesmente não escuta os argumentos da parte contrária, que cada uma, por sinal, sabe muito bem quais são. Dentro de poucos dias, vou participar, na Universidade Federal do Paraná, das XIII Jornadas de Direito e Psicanálise, cujo tema é o Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Uma das questões que pretendo levantar lá é essa espécie de cegueira e de surdez coletiva que tem acometido quase todo mundo, nós estamos absolutamente cegos e surdos aos argumentos do outro, e não é à toa que o ódio explode de uma maneira tão contundente e generalizada como tem acontecido nestes últimos tempos, sobretudo nas redes sociais.
Já que é inevitável que eu venha a falar de coisas tão batidas e repetidas, pelo menos farei uma tentativa no sentido de demonstrar, não apenas por convicção ideológica ou militância política (embora eu tenha tanto uma quanto a outra), mas logicamente, ou seja, dedutivamente, com argumentos e ilações, “à maneira dos geômetras”, o que se pode inferir sobre o lugar e a função do juiz dentro dos estritos limites de um Estado Democrático de Direito. Este, por sinal, é o meu pressuposto essencial. Não pretendo examinar os limites à atuação do juiz em abstrato, mas sim, e unicamente, dentro dos moldes de uma democracia. Não se trata apenas de um Estado de Direito no sentido de regido por leis. Qualquer Estado totalitário é regido pelas leis (de exceção, mas nem por isso menos “leis”) que ele próprio estabelece. Tanto Creonte, o tirano de Tebas, quanto Hitler, o Führer da Alemanha nazista, não teriam maiores dificuldades em proclamar seus Estados como “de direito”. Afinal, as atrocidades que cometem sempre podem ser interpretadas como não proibidas pelo direito vigente, e nesse sentido não deixam de revestir-se de um caráter de legalidade.
Se pretendo conferir a esta exposição um cunho minimamente “demonstrativo”, isso significa que, uma vez admitidas certas premissas, não é possível recusar as consequências que daí sejam extraídas por raciocínio lógico rigoroso. Tentarei resgatar alguns fundamentos do lugar simbólico do juiz e da função que lhe cabe numa democracia. O que me proponho a fazer, em síntese, é uma exposição de como vejo as coisas e da “ordem de razões” mediante a qual as vejo assim. Não pretendo propriamente discutir o jogo, mas as regras do jogo. E, sobretudo, os princípios que fundamentam essas regras e esse jogo. Por falar nisso, vale lembrar que o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal determina que toda decisão judicial deve ser fundamentada e motivada, sob pena de nulidade. Como diz Streck, “a fundamentação é condição de possibilidade de uma decisão e não um mero acessório”[2]. Apenas aos jurados, nos tribunais de júri, é garantido não motivar nem fundamentar suas decisões (CF, art. 5º, XXXVIII). Mas o júri é algo que tem toda a sua particularidade, a sua singularidade histórica do campo do direito penal. E sempre cabe a pergunta: quais os fundamentos das fundamentações das sentenças dos juízes?
No que concerne aos fundamentos do Direito, retomo aqui uma questão que Roberto Lyra Filho dirigiu à norma fundamental pressuposta de Kelsen: o que funda a norma fundamental?[3] Quer dizer, não basta somente pressupô-la como fundamental; é preciso “fundar” essa pressuposição. Para Kelsen, esse fundamento é essencialmente um pressuposto lógico, uma necessidade de estabelecer um primeiro princípio, mas para nós isso não basta. Consideramos que, numa ordem democrática, a norma fundamental tem que assentar também em princípios éticos (uma ética de alteridade, essencialmente), políticos (com ênfase à democracia como convivência dialética das diferenças e ao exercício da cidadania indissoluvelmente associado à ideia de paridade), jurídicos (sobretudo as normas e princípios constitucionais) e axiológicos (enfatizando a solidariedade social e a efetivação da justiça).
Para mim são esses os princípios de fundo, irrenunciáveis e inegociáveis, que constituem os limites primeiros (e últimos) das atividades legiferante e judicante.
Chego, então, à parte nuclear deste trabalho, que é o exame de alguns limites ao exercício da função judicante, sobretudo no campo do direito penal, em uma democracia. Escolho este campo, porque é nele que presentemente se situam as contradições mais nevrálgicas entre, de um lado, a aplicação do direito penal e processual penal, e, do outro, a proteção dos direitos e garantias individuais e de cidadania constitucionalmente consagrados. Para examinar a questão que me estou propondo, parto da seguinte pergunta: Na aplicação das leis penais, a posição do juiz deve ser garantista ou punitivista?
Para pensar a questão proposta acima, e diante do lugar dos direitos humanos e fundamentais como limites intransponíveis à definição e à aplicação das penas, é extremamente esclarecedor considerar, logo de início, que, no que concerne especificamente ao direito penal, este se constituiu, ao longo de sua história, como colocação de limites ao punitivismo irrestrito dos tempos anteriores. O direito penal, como o próprio nome indica, tem caráter punitivo, estabelece penas. Mas o que o caracteriza como direito– distinguindo-o do mero ato de vingança – é que ele estabelece limites ao assim chamado jus puniendi, bem como atribui garantias aos acusados e apenados. Historicamente, o próprio talião constituiu um avanço, pois introduziu o requisito de proporcionalidade: a “retribuição” contida na pena deve ser proporcional à gravidade da lesão do bem jurídico decorrente do delito. Em meu artigo intitulado “A Censura da Expressão Linguageira e a Hipertrofia do Direito Penal a serviço do ‘Politicamente Correto’”, afirmo que “o direito nasceu penal, e todo o seu desenvolvimento consistiu na gradativa superação do direito penal e na diversificação de ramos do direito cuja eficácia social se mediria mais pelo cumprimento espontâneo do que pelo temor da sanção. Nas condições de um direito realmente eficaz, somente em última instância e em raros momentos seria necessário apelar para a sanção penal”[4]. Ou seja, somente quando não houvesse outro recurso para a proteção da pessoa.
Para situar a questão dos limites de que trata este trabalho sob o ângulo da produção das leis e da inevitável interpretação no ato de sua aplicação, é importante considerar, também, que a condição de equivocidade intrínseca à ordem da linguagem (aquilo que é dito sempre pode significar outra coisa) traz problemas para o direito e impõe limites à atividade legislativa, na medida em que esta é chamada a definir com rigor os termos legais – o que é imprescindível quando bens jurídicos essenciais ficam sob ameaça e precisam ser resguardados, como é o caso das normas penais e processuais penais, e quando direitos fundamentais precisam ser assegurados em definitivo, como ocorre com as cláusulas pétreas no direito constitucional. A definição (que, como o nome indica, pretende pôr fim à deriva da significação), isto é, a tipificação deve ser a mais precisa possível, e a interpretação, a mais restritiva, evitando-se tanto tipificações amplas e ambíguas quanto interpretações extensivas e analógicas. É preciso considerar, ainda, que, numa democracia, as leis e as decisões judiciais não estão necessariamente atreladas ao clamor público, ou à vontade da maioria. O juiz pode – e muitas vezes deve – decidir contra a maioria. Essa dupla necessidade de definição rigorosa dos tipos penais, por um lado, e de interpretação restritiva e não analógica, pelo outro, são limites ao assim denominado “livre convencimento” do juiz.
Também quando afirmei mais acima que acho preferível a impunidade de um culpado à punição de um inocente, foi na noção kantiana de respeito [Achtung] que me amparei, a qual diz, em síntese, que o ser humano deve ser tratado como um fim em si mesmo, e não como um meio para fins – o que traz embutida a proibição de tratar as pessoas como coisas, ou seja, coisificá-las. Por mais nobres e necessários que esses fins se nos afigurem, isso não autoriza automaticamente o emprego de quaisquer meios para alcançá-los. Se, por exemplo, para incriminar um torturador, for preciso submetê-lo à tortura, então é melhor deixá-lo impune. E isso não é apenas uma garantia para aquele torturador, mas sim para todos os membros da sociedade. Hoje é ele, amanhã pode ser qualquer um de nós, e é por isso que é necessário exigir a legitimidade dos meios como condição do acesso aos fins. “Em suma, a grande conquista da razão no espaço da democracia moderna foi fazer – pela cultura – as pessoas entenderem que a defesa do outro (do latim alter) significava a defesa de si mesmo e das regras do jogo, até porque nunca se sabe quem será o próximo a ser perseguido”[5]. É por isso que se impõe ao Judiciário julgar em conformidade com as regras, e não com as exceções; em conformidade com as provas, e não com as convicções.
Se concordamos com o que até aqui foi dito, dificilmente deixaremos de admitir que a posição do juiz perante o direito penal e seu processo num Estado Democrático de Direito é aquela que vê as leis e o processo penal como sendo, antes e acima de tudo, normas e procedimentos garantidores dos direitos fundamentais dos cidadãos contra os excessos punitivos do Poder. Uma posição garantista, por conseguinte. É para isso que a Constituição consagra o devido processo legal, a presunção de inocência, a ampla defesa, a legalidade das provas e diversos princípios garantidores dos direitos dos réus, que o direito de processo penal estabelece como as regras do processo, cuja inobservância pode resultar em nulidade do processo ou de atos processuais.
Cumpre deixar bem claro, nesta passagem, que não estou a defender nenhuma espécie de leniência para com os que cometem delitos. A corrupção, em todos os seus níveis e modalidades, é um delito abominável, já que priva a sociedade de serviços essenciais, como os da área de saúde e educação, entre outros, e por isso precisa ser combatida com vigor. Mas não a qualquer preço!
Passo agora a considerar alguns exemplos concretos de decisões e julgamentos, tanto de juízes de primeira instância quanto de tribunais de segunda instância e superiores, que dão eloquente testemunho de que, de uns tempos para cá, as normas legais e constitucionais garantidoras de direitos individuais têm sido relegadas a um plano secundário, simplesmente ignoradas, e às vezes constituído objeto de ironias e comentários escarnecedores por parte daqueles que têm o dever legal de zelar por seu rigoroso cumprimento. Muitos são os exemplos de casos dessa natureza, que já fazem parte do cotidiano da prática judicial, e que têm sido exaustivamente criticados por juristas comprometidos com uma visão garantista do direito punitivo. Como se trata de matéria largamente explorada por outros autores, limito-me a examinar três ou quatro desses casos, que considero dos mais gritantes, para não me alongar demasiadamente.
Consideremos, em primeiro lugar, que o princípio da presunção de inocência, ao qual fiz duas breves alusões mais acima, se constituiu historicamente como uma verdadeira conquista da civilização. À consciência ética moderna repugna partir da pressuposição de que o sujeito é culpado daquilo que lhe imputam e que, portanto, caberia a ele o ônus de provar sua inocência. Essa é uma prática que nos cheira a barbárie, pior ainda que as ordálias, ou julgamentos divinos, próprios do direito antigo, em que o sujeito era exposto a uma prova mortal cujo resultado era a expressão da vontade da divindade. Pelo menos havia nessa prática, de algum modo, um elemento de acaso, ou de vontade superior, que dava uma chance ao sujeito. Mas julgamentos como o da Inquisição medieval e moderna, bem como dos regimes fascistas tanto de direita quanto de esquerda, lhe negam essa chance[6]. O sujeito já entra condenado; acusação e condenação se equivalem. O processo, quando existe, não passa de uma encenação, para dar a impressão de que se chegou ao resultado condenatório, quando na verdade se partiu dele. É, portanto, uma aquisição civilizatória presumir a inocência de todo acusado, recaindo a obrigação de provar sobre o acusador, seja este um particular ou o próprio Estado. É nesse contexto que o princípio da presunção de inocência deve ser entendido como pertencente ao rol das cláusulas pétreas do nosso direito constitucional. Pois bem, uma das decorrências lógicas do princípio da presunção de inocência é que ninguém pode ser forçado a produzir provas contra si mesmo. É claro que eu posso produzir provas contra mim, por exemplo, uma confissão, e posso fazê-lo movido por diversas razões, inclusive aquele sentimento inconsciente de culpa e necessidade inconsciente de punição que Freud tão bem trabalhou. Mas a validade ética e jurídica disso está condicionada à espontaneidade do ato. Posso produzir provas contra mim, mas não devo ser forçado a isso.
Pois bem, vale mencionar dois episódios, entre tantos outros que se vêm tornando comuns na prática judiciária dos nossos dias, em que o princípio da presunção de inocência tem sido “flexibilizado” ou simplesmente ignorado em nome da urgência de realizar o “bem maior” identificado ao tão propalado “combate à impunidade”[7] e em particular ao “combate à corrupção”.
Um desses episódios é a polêmica decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal em meados de 2016 e ratificada como jurisprudência de efeito vinculante em relação às instâncias inferiores em novembro do mesmo ano, segundo a qual a execução da pena deve se iniciar após a sentença condenatória em segunda instância. Mas como assim, se a Constituição Federal determina que a execução da pena somente pode iniciar-se após o trânsito em julgado da sentença condenatória, isto é, após o esgotamento de todos os graus de recurso? Tal decisão viola frontalmente a presunção de inocência acolhida no texto constitucional como cláusula pétrea. Terá a Suprema Corte competência para derrogar uma cláusula pétrea? Ainda que se admita que, como tem sido alegado, a cláusula pétrea é a presunção de inocência enquanto tal, e não que o cumprimento da pena só possa iniciar-se após o trânsito em julgado, e que em vários países “civilizados” e “desenvolvidos” o sujeito começa a cumprir a pena imediatamente após a condenação em segunda instância, bastará isso para que a Suprema Corte esteja investida de poderes para alterar disposição expressa do texto constitucional? Pode o Judiciário agir como se fosse legislador? E imediatamente passar a aplicar aquilo que ele próprio acabou de legislar? Não seria mais razoável e mais correto sob o ponto de vista jurídico que a modificação daquela restrição constitucional fosse feita mediante os ritos e trâmites legais, através de emenda aprovada por maioria qualificada do Congresso Nacional e sancionada pelo Executivo? Pode o Judiciário simplesmente ignorar a exigência legal desses ritos e trâmites, em nome da gravidade atribuída aos delitos e da urgência que se pretende conferir à resposta punitiva?[8] E o que se fará com aqueles que forem absolvidos em instâncias superiores após anos de confinamento nas execráveis prisões brasileiras? Pedidos de desculpas? Indenização por danos morais? Terá o poder público, ainda por cima, a desfaçatez de recorrer de decisões de primeira instância, favoráveis aos prejudicados que ingressarem com ação de danos? Alguns dizem que esses absolvidos em instâncias ulteriores constituem um pequeno percentual da massa dos condenados. Mas o fato de os inocentes condenados serem proporcionalmente poucos torna menos injusta a condenação?
Outra série de episódios, relacionados à “flexibilização” da presunção de inocência, tem ocorrido reiteradamente no que concerne às sentenças do já famoso juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, figura de proa da assim chamada operação Lava Jato, que engloba, além desse magistrado, membros do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, e que tem por objetivo principal a apuração e julgamento de delitos de corrupção cometidos em larga escala contra o patrimônio da Petrobrás, assim como de delitos considerados correlatos desses. É de conhecimento público, e por ele mesmo várias vezes sustentado em artigos, palestras e entrevistas – quando não nas próprias sentenças –, que esse juiz não hesita em passar por cima de normas processuais garantidoras dos direitos dos acusados, quando lhe parece necessário à incriminação ou condenação de alguém que de outro modo, segundo seu juízo, escaparia da punição por ilícitos praticados. Não tenho conhecimento de nenhum caso em que ele tenha recorrido a tal flexibilização para absolver ou atenuar a pena, a não ser quando se trata de delatores que tenham fornecido informações consideradas relevantes para a condenação de outros acusados. Dentre esses vários casos de afrouxamento das normas garantidoras, limito-me a elencar os seguintes:
A) A admissão de provas obtidas ilicitamente, mas que tenham o potencial de produzir a convicção necessária para embasar os juízos condenatórios. Esta, por sinal, é uma das dez medidas contra a corrupção propostas pelo Ministério Público e ora em tramitação no Congresso Nacional, para reformar dispositivos penais e processuais penais – e, por extensão, algumas garantias constitucionais –, com vista a agilizar o trâmite do processo e neutralizar normas garantidoras que possam “atrapalhar” as investigações. Isso com a ressalva de que as provas ilícitas devem ter sido obtidas “de boa fé”...
B) A seletividade no que se refere a sobre quem recairão os processos. Qualquer levantamento evidencia facilmente que pessoas ligadas a partidos de esquerda, especialmente ao Partido dos Trabalhadores, a sindicatos e movimentos sociais têm sido os alvos preferenciais da operação.
C) Os vazamentos seletivos de atos processuais com o intuito de induzir a opinião pública a pressionar, com decisivo e cúmplice apoio da grande mídia, as instâncias superiores do Judiciário a não reformarem os atos processuais irregulares e a não aplicarem sanção aos autores dessas irregularidades. Entre esses vazamentos, avulta a divulgação, autorizada pelo juiz Moro, da conversa telefônica entre a então presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, em abril de 2016, quando a primeira convidava o segundo a assumir a chefia da Casa Civil do seu governo. Interpelado, o magistrado limitou-se a reconhecer o “erro”, e dirigiu ao STF um vacilante “pedido de desculpas”, o qual foi de pronto acolhido pela Suprema Corte.
Um grupo de advogados representou contra o magistrado, pedindo o seu afastamento da condução de alguns processos, sem prejuízo da aplicação de medidas administrativas, disciplinares e penais sobre ele. Em decisão deplorável, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região validou, em 22 de setembro de 2016, com apenas um voto em contrário, as medidas abusivas e excepcionais tomadas pelo juiz Sergio Moro, entre as quais, além do ilegal vazamento para a imprensa da conversa telefônica entre Dilma e Lula, estão o grampeamento manifestamente ilegal dos telefones de escritórios de advocacia, de conversas de advogados com seus clientes, e a admissão como provas em processos penais de elementos ilegalmente obtidos. Para tal decisão, o Tribunal baseou-se na premissa de que a operação Lava Jato não precisa seguir as regras dos processos comuns, e empregou, como fundamentos de tão insólito entendimento, argumentos que não encontram guarida na ordem jurídica vigente, nem tampouco sustentação ética consistente, como os de que vivemos uma “situação inédita” que exige “soluções inéditas”, o que tornaria admissíveis “métodos especiais de investigação” e “remédios excepcionais”. Com isso, concedeu ao referido magistrado e à sua equipe, isto é, à “força-tarefa” que lhe dá sustentação e sob vários aspectos atua sob o seu comando, uma espécie de carta branca para agir em desacordo com o devido processo legal, desconsiderando as garantias processuais. Prevaleceu o entendimento, já apregoado há muito pelo juiz Moro, de que em tempos excepcionais a aplicação das leis também deve ser excepcional, ou, pior ainda, de que tempos excepcionais exigem leis excepcionais! Nada mais pertinente do que relembrar, nesta passagem, a seguinte advertência do eminente jurista Eugenio Raúl Zaffaroni, em artigo que publicou após a decisão do Tribunal (que, para assombro de Zaffaroni, nem mesmo se deu ao trabalho de invocar um “bem maior” como costumam fazer aqueles que querem implantar um regime de exceção), comentando sobre como esse tipo de afrouxamento de normas garantidoras é caminho usual para a instauração de um regime de exceção e de práticas judiciais fascistoides: “Excepcionalidade foi o argumento legitimador de toda a inquisição da história, desde a caça às bruxas até hoje, através de todos os golpes e ditaduras subsequentes. Ninguém nunca exerceu um poder repressivo arbitrário no mundo sem invocar a ‘necessidade’ e ‘exceção’, mas também é verdade que todos eles disseram hipocritamente estar agindo legitimados pela urgência de salvar valores mais elevados contra a ameaça dos males de extrema gravidade”. O problema maior, segundo o mestre argentino, é que “o Tribunal Federal disse textualmente que a Justiça pode ignorar a Constituição quando necessário, para fazer cumprir a lei penal em casos que não são considerados ‘normais’”[9]. Um dos mais importantes pensadores políticos da atualidade, o italiano Giorgio Agamben, há tempos vem chamando a atenção para o fato de que o direito contemporâneo é cada vez mais um direito de exceção e, nessa condição, violador das garantias democráticas que ele pretensamente buscaria preservar.

Mas em que consiste precisamente essa excepcionalidade? Haverá aí uma aplicação da doutrina de Carl Schmitt de que o soberano é aquele ao qual compete determinar o estado de exceção? Não foi precisamente isto que os nazistas fizeram a partir do afrouxamento das normas garantidoras? Em seu excelente pequeno artigo “Ignorando Passado, Processo Penal Brasileiro Revive Auflockerung Nazista”[10], Jacinto Coutinho, tomando como pano de fundo o “afrouxamento” [Auflockerung] das garantias penais e processuais penais operado pelo regime nazista para obter a “verdade” e alcançar a “justiça material”, evoca a “manipulação nazista da linguagem”, cujo ápice talvez resida no dístico Arbeit macht frei (o trabalho liberta), perversamente afixado na porta principal de Auschwitz, e observa, citando Elio Fazzalari e Franco Cordero, que “a base do mecanismo psíquico adotado pela matriz inquisitorial [de conformidade com a qual “a gestão das provas compete ao juiz”[11]], [...] pode produzir ‘quadros mentais paranoicos’[12], [...] [levando o juiz] a tomar o imaginário como real e, contra as expectativas, decidir antes e, depois, sair ao encalço das provas que justifiquem a decisão antes tomada”.

Pois bem, como a pretender chancelar em instância superior o disparatado entendimento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, declarou em Brasília, em discurso para auditores dos tribunais de contas proferido em 8 de novembro de 2016, que “há muito choro e ranger de dentes, mas eu não tenho o sentimento de que haja inocentes presos em Curitiba”, e acrescentou que “não se muda o paradigma de impunidade fazendo mais do mesmo”[13]. Será que ele estava falando sério? Será que o “sentimento” alegado isenta o ministro de apreciar com rigor e imparcialidade os processos sob seu julgamento, decidindo serenamente à luz das provas neles contidas e da legislação que disciplina a matéria, como é o que minimamente se espera de um magistrado? Proceder dessa maneira é que seria, no seu entendimento de constitucionalista reconhecido na área, “fazer mais do mesmo”? Não haveria em tal declaração, evidentemente, um prejulgamento por si só suficiente para acarretar a suspeição do ministro e impedi-lo de participar do julgamento dos processos? Ou será que estas minhas ponderações somente se aplicariam a processos “normais”, e não aos casos “especiais” que seriam todos aqueles oriundos da intocável operação Lava Jato? O ministro ainda acrescentou que “o devido processo penal não pode ser sinônimo de processo sem fim”, mas onde houver abuso, excesso ou desvio, “cabe aos tribunais restabelecer o primado da ordem constitucional”. Mas não é justamente esse o caso de muitos dos processos em julgamento na 13ª Vara Federal de Curitiba, cujos abusos, excessos e desvios saltam aos olhos até mesmo de não especialistas em direito de processo penal? Ou será que para esses não vigora o primado da ordem constitucional, bastando o “sentimento” e a “convicção” dos julgadores? Diante de declaração tão estarrecedora, Leonardo Yarochewsky assim se pronunciou: “Causa perplexidade, além de ser assustador, ver um ministro da mais alta corte do país, professor e doutor em direito constitucional, antecipar sua provável decisão caso seja chamado a se manifestar em julgamento dos casos em tramitação, que já estão no STF ou que chegarão até lá. Lamentável o ‘pré-julgamento’ feito pelo ministro, ‘condenando’ previamente os acusados em nome de seus nobres ‘sentimentos’, além de zombar dos advogados que estariam como os acusados ‘chorando e rangendo os dentes’”[14].

Episódios como estes que venho enumerando neste item apontam claramente para o crescimento entre nós de uma difusa ideologia de estado de exceção, ou seja, uma ideologia fascista, que se avoluma no Judiciário, no Ministério Público, nos órgãos policiais, e impregna toda a sociedade mediante a ora sutil, ora explícita divulgação positiva que recebe dos meios de comunicação de massa. Um exemplo lamentável disso foi a patética cena da entrevista coletiva realizada ao vivo em rede nacional de televisão, no início de setembro de 2016, em que procuradores federais que atuam na operação Lava Jato, tendo à frente o procurador Deltan Dallagnol, dedicaram longo tempo e se valeram de tecnologias “modernas”, como um PowerPoint, para apresentar à população, de modo pretensamente “didático”, a tese acusatória de que o Estado brasileiro estaria tomado por vasta e sofisticada organização criminosa, cujo líder supremo seria o ex-presidente Lula. Tão grave acusação, feita com ampla publicidade, não teve, entretanto, o respaldo de nenhuma prova cabal e definitiva, baseando-se inteiramente em suposições e ilações, sustentando-se em afirmações vagas como “não pode haver outra explicação razoável senão essa”, “estamos convencidos de que não pode ter sido de outro modo”, e equivalentes, para ao final concluírem os ilustres procuradores que “não temos prova, mas temos convicção”! Conclusão verdadeiramente aterradora, sob todos os pontos de vista, sobretudo partindo de quem, por dever de ofício, deve saber que o ônus da prova é de inteira responsabilidade de quem acusa, e que acusar sem provas constitui crime de denunciação caluniosa, como tal tipificado no ordenamento penal. A cena pública montada pelos procuradores é um eloquente exemplo daquilo que Rubens Casara chamou de “processo penal do espetáculo”, que faz do julgamento penal “um objeto privilegiado de entretenimento, [no qual] o desejo de democracia é substituído pelo ‘desejo de audiência’, [passando o processo penal] a ser apresentado, em uma perspectiva maniqueísta, como uma luta entre o bem e o mal, entre os mocinhos e os bandidos. [...] A consequência mais gritante desse fenômeno passa a ser a vulnerabilidade a que fica sujeito o vilão escolhido para o espetáculo. [...] Com a desculpa de punir os ‘bandidos’ que violaram a lei, os ‘mocinhos’ também violam a lei, o que faz com que percam a superioridade ética que deveria distingui-los. [Exceções ao devido processo legal] tornam-se aceitáveis na lógica do espetáculo, sempre em nome da luta do bem contra o mal. [...] Nessa toada, os direitos e garantias fundamentais passam a ser percebidos como obstáculos que devem ser afastados em nome dos desejos de punição e da eficiência do mercado”[15].

E tudo isso é feito em nome da verdade! O comportamento dos procuradores federais é um eloquente exemplo do quanto de mistificação pode se esconder por trás da palavra “verdade”. A suposta verdade a que se acede por essas vias nada mais é que o reencontro, ao final, da certeza e da convicção que estavam presentes desde o início. Por oportuno, lembremo-nos de que Nietzsche diz, em diversas passagens de sua obra, que as maiores inimigas da verdade não são as mentiras, mas as convicções... É fundamental, nesta passagem, enfatizar que há uma diferença crucial entre indício e prova. Cada vez mais se condena com base em meros indícios. No entanto, somente aquilo que é realizado sob o crivo do contraditório pode ser considerado prova.

Abro aqui um pequeno parêntese para inserir a observação, da maior relevância, de que a exigência de que se produza prova conclusiva contra o acusado é, bem vistas as coisas, um direito do acusado, no sentido de protegê-lo contra acusações infundadas, baseadas em meros indícios, ilações e “firmes convicções”, um direito de que a prova não seja deixada ao mero arbítrio do juiz.
D) O uso abusivo da prisão preventiva e da prisão provisória como forma de obter “delações premiadas”. Muitos juízes, inspirados, talvez, no modus operandi típico do juiz Moro e da sua força-tarefa, têm embarcado na tendência punitivista que cresce avassaladoramente na mentalidade penal ora dominante. O alento com que os punitivistas proferem seu discurso me faz lembrar aquilo que Roberto Lyra Filho chamou de “delírio declamatório”: “O escritor francês Alain dizia que se trata dum ‘delírio declamatório’, na medida em que repetimos tranquilamente (e, se contestados, repetimos exaltadamente) os maiores e mais convictos despropósitos”[16]. Essa tendência se manifesta no sentido da hipertrofia do direito penal e do Estado policial. Cada vez mais, novos tipos penais são introduzidos no ordenamento jurídico e se propõe o endurecimento das penas como remédio para combater a criminalidade, sem que se atente para toda uma vasta experiência histórica que atesta a insuficiência de tal “remédio”. Com isso, o que efetivamente se promove é o incremento de um direito penal do Inimigo, do qual a atual seletividade dos que são realmente condenados é um índice evidente. Em nome do combate à impunidade (necessário, é claro, mas somente dentro do devido processo legal), muitos juízes vêm cerceando o direito à ampla defesa e abusando da dilação da prisão temporária, sob variadas justificativas, dentre as quais sobressai a alegação de que, em liberdade, o acusado poderá evadir-se, atrapalhar as investigações ou destruir provas[17]. Tal procedimento constitui verdadeira antecipação da pena e vem sendo largamente empregado como um mecanismo análogo à tortura[18], para que o acusado acabe “se aproveitando” dos discutíveis (para dizer o mínimo) programas de delação premiada, a qual, no fundo, é uma sobrevivência do processo penal medieval. Segundo o direito vigente, a delação de coautores envolvidos na prática de crime somente é válida quando espontânea e prestada em condição de liberdade. Mas não é isso o que se vê na prática. O que tem acontecido à larga é que se prende o sujeito com base em determinados indícios, inclusive a delação de outros acusados, e nessa condição ele é mantido por tempo indeterminado, até que, num dado momento, já não aguenta mais e, confrontado com o dilema de vir a receber longa condenação ou de ter uma pena bem mais leve caso pratique a delação (pois a dosimetria da pena está entregue ao arbítrio do juiz, que joga com os extremos justamente para forçar a delação), ele opta por este “prêmio”. Talvez seja por apostar nisso que o juiz Sergio Moro disse no V Fórum Nacional de Juízes Federais, em 4 de outubro de 2016, que a delação premiada é a “cereja do bolo” do processo penal. E com certeza ela funciona muito bem. É um instrumento eficacíssimo para trazer a verdade à tona – e também, é claro, muitas mentiras. Nesse sentido, a Lava Jato, nos casos em que atuou em conformidade com o devido processo penal, é um marco importantíssimo no combate à corrupção no Brasil, cuja história realmente pode ser definida como antes e depois dela, para o bem e para o mal. O problema é que a verdade, no processo penal, é inseparável da inequívoca apresentação das provas legalmente admitidas e da observância do devido processo legal. Coitados dos que vierem a ter o azar de ser os últimos a cair nas malhas dessa midiática “operação”! Como não restarão outros que eles possam delatar para abrandar suas próprias penas, não terão qualquer “prêmio” a receber. Só lhes restará a dureza da condenação, com todos os agravantes que a “convicção” do juiz decidir impor-lhes!
A delação premiada, entretanto, embora eficiente, muitas vezes deriva claramente de uma tortura, visto que torturar não é somente colocar o sujeito num pau de arara, aplicar-lhe choques elétricos e praticar outras atrocidades tão comuns na época do regime militar e em muitas delegacias de polícia ainda hoje. Muitos sustentam que tal prática é indispensável para que se obtenha a verdade, pois de outro modo jamais o sujeito trairia seus comparsas na prática do crime. Para eles, os nobres fins do combate à corrupção justificariam os meios para atingi-los, ainda que equivalentes à prática de tortura. Zaffaroni contesta enfaticamente essa tese: “A delação premiada é como a tortura: dá lugar a quem, para resolver sua situação, fale qualquer coisa. Que valor tem o que diz uma pessoa que sofre extorsão? Se isso é prova de culpa, realmente voltamos à Idade Média, acabou o Estado de Direito, naufragaram todas as garantias. Não há crime do colarinho branco que não se possa investigar com papéis, a marca fica, o dinheiro sujo tem rotas que se podem investigar sem maiores dificuldades, não é necessário recorrer à delação. Isto é como fingir que não se pode investigar e punir sem tortura”[19]. Ele tem razão, porque, se o ônus da prova cabe a quem acusa, espera-se dos órgãos públicos que tenham competência para obter licitamente essa prova, não para forjá-la, ou obtê-la mediante “extorsão”.
Em interessante artigo, Maria Lucia Karam assim se pronuncia sobre a delação premiada no contexto ideológico em que ela se insere: “Trazendo para o trono de ‘rainha das provas’ a famigerada delação premiada, obtida em quantidade astronômica através da abusiva decretação de prisões provisórias com o nítido, chantagista e torturante objetivo de levar investigados ou réus a fornecer as provas que o Ministério Público cômoda e ilegitimamente se dispensa do ônus de produzir, a midiática ‘operação lava-jato’ tem aprofundado a totalitária tendência, já há algum tempo introduzida no processo penal brasileiro, de utilização de insidiosos e invasivos meios de investigação e busca de prova para ilegitimamente fazer com que, através do próprio indivíduo investigado ou acusado, se revele a verdade sobre suas ações tornadas criminosas. A famigerada delação premiada, entronizada nos procedimentos relacionados às ações penais de naturezas cautelar e condenatória, reunidas sob a midiática denominação de ‘operação lava-jato’, encerra uma valoração positiva de atitude profundamente reprovável no plano moral. [...] Ao elogiar e premiar a delação, o Estado transmite valores tão ou mais negativos do que os valores dos apontados criminosos que anuncia querer enfrentar. Trair alguém, desmerecendo a confiança de um companheiro, pouco importando qual o tipo de companheirismo, é uma conduta reprovável no plano moral, devendo ser repudiada em qualquer sociedade que veja a amizade e a solidariedade como atitudes positivas e desejáveis para um convívio harmônico entre as pessoas. A premiação da delação faz com que a traição passe a aparecer como algo positivo, merecendo até mesmo um prêmio. Com o elogio e a recompensa à conduta traidora, o Estado nitidamente exerce um papel deseducador no âmbito das relações sociais. Além disso, para obter a delação, o Estado se vale de negociações de direitos que não conseguem ocultar seu parentesco com a chantagem, como eloquentemente demonstram as abusivas decretações e manutenções de prisões provisórias no âmbito da midiática ‘operação lava-jato’. Vale notar que membro do Ministério Público Federal, em parecer em habeas corpus, não hesitou em escrever, com todas as letras, que tais prisões teriam a ‘importante função de convencer os infratores a colaborar com o desvendamento dos ilícitos penais, o que poderá acontecer neste caso, a exemplo de outros tantos’. Ao ser entrevistado, talvez excitado por estar, mesmo que efemeramente, sob os ‘holofotes da mídia’, despudoradamente afirmou que ‘passarinho pra cantar precisa estar preso’. [...] Na linha do membro do Ministério Público Federal que despudoradamente afirmou que ‘passarinho pra cantar precisa estar preso’, alegam os arautos da delação premiada que sem a ‘colaboração’ de investigados e réus não seria possível obter as provas necessárias à condenação dos autores dos alegados crimes objeto da persecução penal. Ora, se o Ministério Público é incapaz de cumprir o ônus que lhe foi atribuído por princípios inerentes à democracia de provar as acusações que formula ou pretende formular; se o Estado é incapaz de investigar crimes sem se valer de meios insidiosos, reprováveis e imorais, a prevalência das normas inscritas nas constituições democráticas e declarações internacionais de direitos humanos, bem como a prevalência do necessário conteúdo ético que há de orientar qualquer atividade estatal em um Estado democrático, estaria a exigir que esses crimes permanecessem impunes. A violação a princípios e normas constitucionais é sempre mais grave e deletéria para a democracia do que eventuais impunidades de quaisquer crimes”[20].
Fazendo uma análise crítica da delação premiada à luz da teoria dos jogos, Alexandre Rosa observa que “a proposta é a de metaforizar a delação como um mercado de compra e venda de informação (provas). De um lado, existe o monopólio do comprador – Estado, via Ministério Público – e, do outro, possíveis vendedores de informação (colaboradores/delatores). Havendo interesse recíproco na compra e venda de informação compartilhada, resta a fixação de seu preço. O comprador está interessado em obter informações capazes de imputar responsabilidade penal ao delator e também a terceiros, aceitando, com isso, reduzir o preço penal (pena, regime etc.). Os critérios para fixação do preço são flutuantes e dependem da qualidade, quantidade e credibilidade do material vendido, enfim, das recompensas dos negociadores. A questão a ser sublinhada é a da existência de modos ocultos de funcionamento. Não se trata de ilícitos, mas de blefes, jogadas arriscadas e cartadas do tipo ultimato: é pegar ou largar”. Em seguida, fazendo um paralelo com o direito norte-americano (em cujo modelo, por sinal, os arautos dessa modalidade de obtenção de provas no Brasil foram buscar inspiração), prossegue o autor: “O encarceramento em massa americano a partir da década de 1970 teve como alavanca o plea bargain, ou seja, a Justiça negociada, pela qual há um esforço da acusação para que o suspeito confesse a culpa e renuncie ao ‘direito ao processo’. Perceba-se que o processo é tido como direito disponível e, portanto, renunciável. Difere, assim, da tradição que entende a culpa como a decorrente de uma sentença judicial, excluindo, inclusive, a possibilidade de se condenar alguém exclusivamente com base na confissão (CPP, artigo 197). No novo modelo – que coexiste com o modelo continental –, negocia-se quase tudo. E a proposta é feita no ‘pegar ou largar’: se o suspeito aceitar a culpa – mesmo sendo inocente –, recebe uma pena pequena e com benefícios; se quiser o processo, não terá nenhum benefício e servirá de exemplo para que os futuros sejam ‘incentivados’ a aceitar a culpa, mesmo sendo inocentes”[21]. Para quem tem um mínimo de comprometimento com um processo penal submetido às limitações que devem nortear uma sociedade democrática, tal espécie de procedimento é simplesmente repugnante. Aliás, os Estados Unidos nunca foram um bom modelo de direito penal para ninguém. A imensa dimensão da sua população penitenciária e o fato de ainda hoje manter as execráveis penas de morte e de prisão perpétua em vários Estados já falam por si...
Essa maneira de atuar segundo o modelo da Lava Jato vai-se disseminando com tanta força no Judiciário, que hoje muitos dos juízes que se esmeram em superar Moro em sua maneira de conduzir os processos chegam a propor abertamente em seus despachos e sentenças a prática de tortura, sem qualquer autocensura. Foi o que fez, em 1º de novembro de 2016, o juiz Alex Costa de Oliveira, da Vara da Infância e Juventude [pasmem!] do Distrito Federal, quando determinou por sentença à Polícia Militar a desocupação de uma escola em Taguatinga, ocupada por estudantes que protestavam contra a Proposta de Emenda Constitucional que congela os gastos e os investimentos públicos em saúde, educação, previdência e outros serviços essenciais (da qual voltarei a falar no final deste trabalho); contra o malfadado projeto de reforma do ensino médio (que o governo pretende impor de cima para baixo, sem qualquer discussão pública, e que, entre outras barbaridades, retira do currículo obrigatório disciplinas como Filosofia e Sociologia, propícias ao desenvolvimento de uma reflexão crítica sobre o Estado, o poder e a sociedade); e contra o projeto “Escola sem Partido” (que, a pretexto de despartidarizar o ensino, busca impedir a consciência e o pensamento autônomo, o confronto de ideias e o livre debate, além de estimular os alunos a delatar professores que supostamente estariam fazendo doutrinação política). Nessa sentença o juiz do Distrito Federal determinou o corte de água e energia elétrica e da entrada de alimentos, impôs aos estudantes o isolamento físico, proibindo-lhes contato com quaisquer pessoas, inclusive seus pais e advogados, e ordenou a utilização de instrumentos sonoros durante a noite para impedir ou dificultar o sono dos adolescentes. Tais técnicas, segundo o próprio juiz, “servirão como forma de auxiliar no convencimento à desocupação”[22]. Alguém já disse que, ao invés de escutar os estudantes, o juiz queria deixá-los surdos...
E) A reação corporativa de membros do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal contra qualquer tentativa de limitar legalmente o estrito exercício de suas atribuições e de definir suas responsabilidades por excessos porventura praticados. Atuando em articulação conjunta, eles tentaram recentemente inviabilizar um projeto em tramitação no Congresso que visa a coibir os abusos de autoridade. Procuradores integrantes da “força-tarefa” da Lava Jato estiveram na Câmara dos Deputados em 14 de novembro de 2016 e conseguiram que o relator do projeto, deputado Onyx Lorenzoni, que já se manifestara enfática e reiteradamente a favor da aprovação, retirasse dispositivo que previa punição por crimes de responsabilidade a magistrados, procuradores e promotores, sob a alegação de que “não é o momento” para aprovar tal legislação, pois ela seria usada por investigados para atrapalhar o andamento das investigações e mesmo para criminalizar os investigadores. Deixaram bem clara sua concepção de que a própria tramitação e discussão do projeto no Legislativo constituiria uma tentativa de “obstrução da Justiça”, e não hesitaram em conclamar previamente a opinião pública, com explícito engajamento da mídia, a dar respaldo à sua pretensão. E têm obtido êxito.
Ora, é da competência do Poder Legislativo aprovar projetos de lei e enviá-los à sanção do Executivo, inclusive emendas constitucionais que imponham limites à atuação do Poder Judiciário. A este compete apenas declarar a posteriori, se assim for o caso, a inconstitucionalidade de tais leis. Mas não lhe compete, nem ao Ministério Público, antecipar-se e bloquear projetos de lei em início de tramitação no âmbito do Legislativo. Quer dizer, então, que, para combater a criminalidade, magistrados, procuradores, promotores de justiça e delegados de polícia têm agora carta branca para praticar crimes contra as normas garantidoras? Ao bloquearem a aprovação de leis que definem e punem os casos de abuso de autoridade, não estarão eles admitindo que, sendo por uma “boa causa”, teriam o “direito” – ou, quem sabe, até mesmo o “dever” – de abusar? No afã de impedir que o Congresso aprove normas que, no seu entendimento, obstruiriam a Justiça, não estarão eles, por sua vez, obstruindo o poder de legislar? Será legítimo que, por terem a “boa intenção” de combater a corrupção e a impunidade, eles se coloquem a si mesmos acima da lei?
Aliás, em nome de que eles se autorizam? Em nome de que se autoriza, por exemplo, o juiz Sergio Moro para passar por cima de garantias processuais e praticar uma justiça material, como se justiceiro fosse? Observe-se, de passagem, que fazer justiça não é, em definitivo, tarefa para justiceiros... Em nome de que ele se autoriza, também, a tentar explicitamente interferir na tramitação de projetos de lei no Congresso que possam, no seu entendimento, criar obstáculos ao trabalho da Lava Jato? E, ainda por cima, a convocar manifestação pública como instrumento de pressão sobre os legisladores? E sendo ele um juiz de 1ª instância que tem sobre si toda uma pirâmide hierárquica composta pelo Tribunal Regional Federal, pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, além, é claro, do Conselho Nacional de Justiça! Que ele tem poder, sim, e muito grande, é algo que o fato de esses órgãos superiores assistirem como que petrificados, com raras e tímidas objeções e frequentemente com certa atitude que beira o aplauso, atesta eloquentemente. E com a falta de questionamento crítico (pelo contrário, com o expresso e entusiasmado apoio) da grande mídia! O que sidera essas Cortes diante do “Nome de UM” (La Boétie) que Moro parece encarnar? O presidente da República, por sua vez, apressou-se em anunciar que vetará o projeto de lei contra o abuso de autoridade se este for encaminhado à sua sanção. E Renan Calheiros, presidente do Senado Federal, ele próprio réu em vários processos criminais, foi logo declarando que a Lava Jato é “sagrada”! Mas qual é a fonte desse poder, ou, retomando minha indagação inicial, em que ele se autoriza para tanto? Tenho pensado nisso nestes últimos meses, sem chegar a uma resposta conclusiva, até que me veio às mãos uma fotografia do para-brisa traseiro de um automóvel em Curitiba, com os seguintes dizeres em letras garrafais: JUIZ SERGIO MORO, LIVRA-NOS DO MAL! Eis aí a âncora que o sustenta, a partir da qual ele retira sua autorização: o lugar do paladino do Bem, do salvador da Pátria, daquele que tem a missão (quase divina) de redimir a sociedade pela cura dos males (a corrupção, sobretudo) que a flagelam – cura que só pode acontecer, no seu modo de ver, através da punição dos culpados. Essa “fantasia de redentor” é outro ponto importante que se pode tomar metaforicamente por referência ao “delírio de redentor”, que é um dos traços de estrutura da paranoia. Tudo, enfim, em nome do Bem... Pois é aí que mora o perigo... Cabe relançar aqui a pergunta que tantas vezes tenho feito: Quem nos protegerá da bondade dos bons?
É imprescindível, porém, que a esta altura se considere que – conforme já comentei no início deste trabalho com referência a quaisquer tipos penais –, os referidos crimes de responsabilidade, caracterizadores do abuso de poder, devem ser devidamente tipificados sem dar margem a preceitos abertos, vagos ou ambíguos, e que sua interpretação seja restritiva e não comporte analogias nem técnicas semelhantes. Figuras típicas enunciadas como, por exemplo, “agir de modo incompatível com a dignidade ou o decoro”, ou “por motivação partidária”, que constam do Projeto, devem ser cuidadosamente evitadas, porque a patente imprecisão de suas tipificações dá ensejo à prática das mais diversas interpretações extensivas e analógicas. Se aprovados, dispositivos dessa natureza conduzirão, fatalmente, entre inúmeras outras consequências nefastas, a que a mesma seletividade tão comum nos processos penais em geral seja transposta para o julgamento dos crimes de responsabilidade de magistrados, promotores e procuradores, de modo a punir somente aqueles que ao sistema interesse descartar, como os juízes que exigem que as garantias processuais sejam rigorosamente observadas, que partem da presunção de que o réu é inocente até prova em contrário, que mandam soltar presos quando constatam que seus prazos de prisão provisória há muito se esgotaram, que, enfim, criam obstáculos “legalistas” ao que poderia ser uma marcha mais célere da justiça. Esses juízes, que deveriam ter o amparo da legislação para o exercício de suas funções com a necessária independência, é que estarão na mira da sanha punitiva que grassa na mentalidade jurídica contemporânea. Reportando-se a esse assunto, o juiz Alexandre Rosa assim se manifesta: “A abertura dos tipos penais do Projeto de Lei, embora aparentemente [possa] servir à punição dos que abusam, no fundo, pode ser utilizada de meio para o aumento do controle ideológico das manifestações de pensamento. Basta conferir algumas investidas recentes para se saber do que se fala. Com o arrojo dos ‘conservadores’, em breve, muitos ‘progressistas’ serão punidos e excluídos”[23].
As observações acima se aplicam perfeitamente a algumas das 10 Medidas (des-medidas) de Combate à Corrupção propostas pelo Ministério Público Federal com o objetivo de agilizar os processos penais e aumentar sua eficiência punitiva mediante a restrição de direitos e garantias, inclusive de natureza constitucional. Com o propósito de dar ao “pacote” de medidas suficiente força de pressão para tornar irreversível sua aprovação pelo Legislativo, os procuradores promoveram ampla divulgação, envolvendo desde a grande imprensa até igrejas evangélicas, e obtiveram mais de dois milhões e meio de assinaturas em apoio à proposta. Somos induzidos a crer que tão maciça aprovação popular conferiria imediata legitimidade ao pacote de medidas. Mas podemos problematizar essa opinião ao considerarmos que, se o objeto das medidas fosse a implantação da pena de morte ou a redução da maioridade penal, o apoio social seria, com toda a certeza, ainda maior... Quantidade não significa automaticamente legitimidade. Por insuficiência de tempo, limito-me a apreciar sucintamente uma das medidas propostas: o chamado “teste de integridade”, que consiste em propor a funcionário público a prática de algum ato de corrupção e dar-lhe imediata voz de prisão caso ele “caia em tentação” e “morda a isca”. A imoralidade de tal iniciativa me parece por demais patente para que eu me estenda em sua apreciação. Propor a quem quer que seja a prática de um delito com a finalidade preconcebida de incriminá-lo é um ato reprovável dos pontos de vista moral e ético. Induzir ao crime com o propósito de combater o crime é uma prática contraditória e um evidente emprego da deplorável tese de que os fins justificam os meios[24]. A propósito, o dispositivo do teste de integridade estabelece um teto que a indução à propina não deve ultrapassar; ela não deve consistir numa quantia tão elevada que provoque “tentação desmedida que possa levar uma pessoa honesta a se corromper”!!! Que conteúdo latente, que admissão subliminar podemos enxergar em tal restrição, senão a de que, afinal de contas, honestidade tem limites e, se a quantia for elevada demais, quem sabe os próprios proponentes das medidas também cairiam em tentação?
Para concluir, vou retomar a questão do Golpe. Em minha opinião, apesar de o impedimento de Dilma Rousseff e seu afastamento da presidência da República, sem que o cometimento de crime de responsabilidade tenha sido cabalmente demonstrado mediante provas inequívocas (e, se havia dúvidas, por que não conceder-lhe, como a qualquer acusado, o benefício do in dubio pro reo?), embora o afastamento nessas condições constitua um golpe de Estado desferido sem a participação do clássico apelo à intervenção militar, e sim mediante o emprego de brechas e lacunas da legislação e de uma interpretação tendenciosa do Judiciário e do Legislativo (nesse sentido, foi um golpe “legal”), não é, todavia, nesse fato que reside o âmago do Golpe.
O Golpe foi desferido, acima de tudo, contra a Constituição “cidadã” de 1988, no que ela contém de afirmação de direitos fundamentais e do dever correspondente do Estado no sentido de promover políticas públicas capazes de dotar de efetividade esses direitos. O esboço de Estado de bem-estar social delineado na Carta Magna, incluindo a universalização do acesso ao trabalho com salário digno, à educação, à saúde, à moradia, à previdência e assistência social, tem um custo elevado, que só pode ser coberto ao preço de políticas públicas inclusivas – o que exige, necessariamente, melhor distribuição de renda, que só se obtém mediante maior tributação dos mais ricos. E nada pode causar mais horror à ganância do capital acumulativo!
Nesse sentido, o ato indispensável à consumação do golpe consiste na implementação forçada de uma política neoliberal, batizada, no início, de “Ponte para o Futuro” (só faltou especificar que futuro, e de quem), da qual a Proposta de Emenda Constitucional que estabelece um teto para os gastos e investimentos públicos por inacreditáveis vinte anos, durante os quais nenhum reajuste poderá ultrapassar os índices oficiais de inflação – o que significa a proibição de qualquer aumento real desses gastos –, inclusive nas áreas de educação, saúde, pagamento dos funcionários públicos, previdência e assistência social, é uma condição imprescindível. Essa proposta, já apelidada popularmente de PEC da Maldade, e de PEC da Ignorância e da Morte, foi aprovada por ampla maioria na Câmara dos Deputados e ora se encontra em tramitação acelerada no Senado. Não se tem notícia de nenhum outro país em que tais medidas de “ajuste fiscal” e de “política de austeridade” tenham sido impostas com a predeterminação de um período de tempo tão extenso. Toda uma ampla mobilização social de protesto, abrangendo inúmeros segmentos da população, inclusive milhares de estudantes e professores que ocupam centenas de escolas e universidades públicas em todo o país como forma de protesto contra tal medida, até agora não teve força suficiente para barrar o seu avanço no Congresso Nacional. Essas medidas jamais seriam aprovadas e autorizadas numa eleição democrática. E um governo visceralmente ilegítimo, como é o caso do governo Temer, coautor e herdeiro do Golpe cuja lógica interna delineei mais acima – ou mesmo se fosse um governo legitimamente instituído –, jamais obteria aprovação popular para sua implantação. Daí a necessidade do Golpe, para impô-las de cima para baixo, com a participação de um Congresso em parte cúmplice, em parte acuado pelas pressões que recebe.
É claro que um programa de austeridade se faz urgente e necessário. Quero deixar bem claro que concordo, como não poderia deixar de ser, com a necessidade da fixação de limites para os gastos públicos. Parece-me claro, também, que todo um conjunto de renúncias fiscais em favor de empresas, juros subsidiados e outras benesses implantadas em larga escala pelos governos petistas e por outros que os antecederam, deve ser rigorosamente revisto. É claro, ainda, que há, em larga escala, desperdícios resultantes da incompetência, da ineficiência e da corrupção, que precisam ser combatidos sem trégua. Como parte viciada de tudo isso, uma ampla gama de privilégios ilegítimos foi incorporada, ao longo dos séculos e das décadas, ao nosso ordenamento jurídico, com tanta persistência e constância que acabaram por transformar-se em “direitos adquiridos”. E são justamente os ocupantes dos altos cargos dos três Poderes os mais pródigos em conceder a si mesmos toda sorte de privilégios, muitos dos quais absolutamente vergonhosos, batizados de “auxílio-moradia”, “auxílio-alimentação” e outras manobras do gênero. Muitos são os magistrados suecos, alemães, canadenses etc. que se têm mostrado estarrecidos e até se recusam a acreditar que a magistratura brasileira conceda a si própria tão bizarros benefícios. Perguntado sobre o que acha dos inúmeros privilégios – todos por conta do dinheiro público, é claro – de que os magistrados brasileiros desfrutam, o juiz Carsten Helland, do sindicato dos magistrados suecos, respondeu: “Juízes não podem agir em nome dos próprios interesses, particularmente em tamanho grau, com tal ganância e egoísmo, e esperar que os cidadãos obedeçam à lei. [...] As Cortes de um país são o último posto avançado da garantia de justiça em uma sociedade, e por essa razão os magistrados devem ser fundamentalmente honestos e tratar os cidadãos com respeito. Se os juízes e tribunais não forem capazes de transmitir esta confiança e segurança básica aos cidadãos, os cidadãos não irão respeitar o Judiciário. E, consequentemente, não irão respeitar a lei”[25].
Sim, é necessário um programa de austeridade. Mas que não seja voltado primordialmente à limitação e supressão de direitos dos trabalhadores, dos aposentados e daqueles que carecem do amparo de políticas públicas, como o seguro-desemprego, os programas de previdência e assistência social e outros semelhantes. Estes é que sempre são atingidos por tais programas de austeridade num sistema capitalista, sobretudo sob a forma perversa do modelo neoliberal, cujos eixos centrais são a desigualdade e a competição, a serem regidas exclusivamente pelas “leis do Mercado”. É a eles que se pedem “sacrifícios”, que deem seu “quinhão de contribuição” sempre que amargas políticas de contenção de gastos são impostas.
E essas políticas têm sempre o mesmo objetivo: garantir recursos que permitam “honrar” a dívida pública. Para o pagamento da dívida, toda consequência é tida por válida: o desemprego em massa, o empobrecimento de parcelas substanciais da população, o corte de programas de educação e de saúde, a fome, a morte de milhares ou milhões de pessoas. Os programas de austeridade impostos recentemente pelo capitalismo financeiro em países endividados pela crise que esse mesmo capitalismo engendrou, como a Espanha, Portugal e principalmente a Grécia, e a catástrofe econômica que sobre eles se abateu em decorrência das medidas draconianas implementadas, são a prova cabal do que estou a afirmar. A Grécia chegou a fazer um plebiscito para conferir força política às medidas de contenção de gastos que ela própria considerava possíveis de ser aplicadas, mas no dia seguinte à aprovação plebiscitária dessas medidas teve que voltar atrás e curvar-se às imposições do capital financeiro, que não tolera a menor ameaça à sua voracidade pelos ganhos e pelos juros. O povo grego ainda sofre as consequências da perversa política econômica que lhe foi imposta.
Sim, pedem-se – ou melhor, impõem-se – renúncias e sacrifícios para efetivar as políticas de austeridade. Mas somente àqueles cujo poder é insuficiente para bloquear o avanço dessas políticas: os trabalhadores, os funcionários públicos, os aposentados, os estudantes... Nem se levanta, por exemplo, a questão de qual será a “cota de sacrifício” a ser imposta aos bancos e aos grandes agentes do mercado financeiro. No mundo regido pela lógica desse mercado, tal questão soa como autêntica “heresia”[26]. A ideologia neoliberal vem se impondo como – para usar a expressão de Dardot e Laval em excelente livro recentemente publicado no Brasil – a “nova razão do mundo”[27]. Faz parte de tal lógica que essas instituições nada têm a pagar, mas apenas a receber em situações de crise, bem como, aliás, em quaisquer outras situações... Banco não paga; banco recebe, cobra, e cobra caro – é uma espécie de lema aí implícito. O fundamento de tal concepção é que o pagamento das dívidas é sagrado; por conseguinte, todo sacrifício[28]social necessário para “honrar” tal pagamento faz parte do jogo e por isso deve-se suportá-lo. Propriamente insuportável é apenas o “calote”. As dívidas (os nobres fins) devem ser pagas a qualquer preço (os meios, por mais cruéis que sejam, são justificados por aqueles fins). Aliás, a rigor, no capitalismo financeiro internacional (que define as grandes linhas da política econômica em nível mundial), o essencial é que as dívidas não sejam liquidadas. É preciso mantê-las, para que o mais importante fique assegurado: o pagamento dos juros delas resultantes. É isso que assegura a manutenção das relações de dependência. Quanto mais dependente da ordem financeira internacional for uma nação, mais extorsivas serão as taxas de juros que lhe serão impostas, a pretexto de que as instituições financeiras precisam estar resguardadas contra os riscos da inadimplência. Trata-se de verdadeira agiotagem extorsionária, que entretanto é a regra dessas operações. Na perspectiva dos agentes financeiros, receber a totalidade da dívida equivaleria, literalmente, a “matar a galinha dos ovos de ouro”...
Será que tem de ser realmente e sempre assim? A obrigação de saldar as dívidas – independentemente das condições no mais das vezes extorsivas dentro das quais elas se constituem e crescem de modo ilimitado, através dos juros obscenos cobrados principalmente aos mais pobres –, essa obrigação é mesmo tão sagrada como se afirma, é uma verdade tão axiomática como a lógica do sistema proclama de modo peremptório? Não haverá limites éticos a essa dívida enquanto tal? Não pode ela ser passível de revisão ou de auditoria? Na magnífica peça O Mercador de Veneza, escrita no final do século XVI e ambientada na época em que o mercantilismo já superava o feudalismo e começava a impor-se como a regra e o modelo da nova economia ocidental (e depois, por extensão e por conquista, da economia mundial), cujo ponto fulcral é o cumprimento dos contratos, Shakespeare propõe metaforicamente uma questão crucial quanto ao limite ético desse cumprimento: as dívidas podem até ser pagas com libras de carne, mas não podem custar, além disso, o derramamento de sangue. Eis aí um verdadeiro farol para iluminar a reflexão sobre os limites éticos do cumprimento dos contratos.
Um programa neoliberal de austeridade econômica, como o que acabo de esboçar, não pode deixar de basear-se, em larga medida, na precarização das relações de trabalho. Direitos trabalhistas são vistos apenas sob o ângulo dos custos; são entraves a uma produtividade eficiente. Daí a necessidade de limitá-los e mesmo de suprimi-los. Empresas competitivas e mão de obra barata é tudo o que importa. Não é por acaso que o direito do trabalho é um alvo privilegiado do ódio neoliberal. E a Justiça do Trabalho, é claro, não pode deixar de ser vista como tendenciosa, parcial, sempre do lado do trabalhador, um obstáculo à liberdade contratual. Daí que muitos, nas esferas jurídica, política e empresarial, pregam sua extinção pura e simples. Seria, por sinal – pensam eles, e às vezes o dizem –, uma boa oportunidade para a redução das despesas públicas...
Dentro desse quadro, é lamentável que, em nosso país, o Judiciário, sobretudo através de sua instância máxima, venha compactuando com a precarização das relações trabalhistas. Teses devastadoras dessas relações, como a da “terceirização” (que nada mais é do que a transferência para uma interposta empresa das responsabilidades e obrigações que as leis trabalhistas atribuem aos empregadores); da “prevalência do negociado sobre o legislado” (que equivale a uma revogação tácita das leis que garantem direitos aos trabalhadores) e, mais recentemente, do cabimento de “desconto salarial de servidores públicos em greve”, desde o primeiro dia e independentemente da existência de qualquer decisão judicial decretando a ilegalidade da greve[29], têm sido objeto de manifestação pública favorável de alguns ministros e parecem prosperar na Suprema Corte. Com isso, o STF, cujos membros são vitalícios e não passam pelo escrutínio popular, poupa o Congresso Nacional, cujos membros estão periodicamente sujeitos ao crivo desse escrutínio, do desgaste político de aprovar leis contrárias aos direitos dos trabalhadores e, por isso mesmo, impopulares. O Judiciário não pode estabelecer leis, no sentido jurídico-formal do termo, mas pode perfeitamente transformar o que seria o conteúdo dessas leis em jurisprudência que se imponha com efeito vinculante sobre as instâncias inferiores, dando, com isso, validade a esses conteúdos. Com tal procedimento, o Supremo age, na prática, como se legislador fosse, substituindo-se ao Poder competente e derrogando implicitamente dispositivos legais e constitucionais[30].
* Palestra proferida por ocasião do VI Curso de Jurisdição e Psicanálise para Magistrados, promovido pela Escola Nacional da Magistratura, pela Associação dos Magistrados Brasileiros e pelo Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Búzios (RJ), 27 de novembro de 2015.
Palestra proferida por ocasião da VI Jornada de Psicanálise e Direito, promovida pela Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória e pela Faculdade de Direito de Vitória. Vitória (ES), 07 de maio de 2016.
Palestra proferida por ocasião do XXX Encontro dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 1ª Região, promovido pela Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Teresópolis (RJ), 08 de outubro de 2016.
Notas e Referências:
[1] E, ainda assim, com ressalvas. Considere-se, por exemplo, o seguinte caso: Quando Marcelo Calero, ex-ministro da Cultura do governo Temer, foi ao programa “Fantástico” da Rede Globo de Televisão, em 27 de novembro de 2016, denunciar que o presidente da República havia aceitado sinalizar no sentido de que a Advocacia Geral da União tentasse influenciar o Serviço do Patrimônio Histórico da Bahia a “flexibilizar” parecer contrário à construção de um edifício de mais de 30 andares na cidade de Salvador – acima do padrão estabelecido pelas normas urbanísticas vigentes –, construção essa que era do interesse de Geddel Vieira Lima, também ex-ministro do mesmo governo (e que caiu em decorrência do que aqui estou relatando), o qual estava comprando um apartamento nesse edifício, o presidente se manifestou indignado com o fato, que qualificou de gravíssimo (e que sem nenhuma dúvida o é), de que um ministro de Estado gravasse sorrateiramente conversa com o chefe do Governo. Para mim, é também gravíssimo o conteúdo da denúncia, bem mais do que o do suposto tríplex do ex-presidente Lula no Guarujá, cuja propriedade nunca ficou cabalmente comprovada. Por si só, bastaria para deflagrar a abertura de um processo de impeachment contra Temer. Este, ao aceder em “prestigiar” um amigo, suprimiu no ato a linha divisória entre o público e o privado.
Mas o ponto a que quero chegar – e que, com certeza, pode dar muito o que pensar – é que, no auge de sua indignação, e como o que lhe pareceu ser um testemunho da lisura de seus atos, o presidente da República declarou que mandaria instalar em seu gabinete de trabalho dispositivos que gravassem todas as suas conversas. Para mim, um “autogrampeamento” dessa espécie revela a posição de um sujeito encurralado, na ânsia de salvar pelo menos as aparências. Aquela já tênue fronteira entre o público e o privado, a que antes me referi, é condição da democracia mesmo no interior de um gabinete presidencial. Mas, acuado pelas circunstâncias, Temer falou em dissolvê-la dentro de seu próprio ambiente de trabalho. Para proteger-se, passa agora a mostrar-se, sem nenhum anteparo, à escuta (depois também ao olhar?) dos outros. Dá até para pensar na “Carta Roubada”, de Edgar Allan Poe... O perigo do grampeamento – que é uma prática totalmente coerente com uma sociedade onde a delação é premiada – é que, quando se afrouxam os mecanismos do seu controle legal, ele não demora a se “institucionalizar”. Ciente de tão estarrecedora realidade, a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, não tardou a declarar que daquele momento em diante estava proibida a entrada em seu gabinete de pessoas portando telefones celulares. Todo esse conjunto de coisas me parece reafirmar a tese de que o Grande Irmão nunca “se encarna” propriamente na figura de um Líder (ainda mais quando se trata de alguém que possui pouquíssimo apoio popular e nula legitimidade para o exercício do cargo, como o nosso atual presidente). O Grande Irmão está sempre mais além, e é dessa inacessibilidade que resulta o seu poder, como acontece no romance 1984, de Orwell, onde a imagem do Big Brother ocupa quase todos os espaços, mas ele mesmo (será que existe, afinal de contas, esse “ele mesmo”?) não se encontra em lugar nenhum.
[2] STRECK, Lenio Luiz. “Supremo poderia usar fundamento da ‘excepcionalidade’ para julgar Cunha?”. IN: http://www.conjur.com.br/2016-mai-08/streck-supremo-usar-excepcionalidade-julgar-cunha
[3] LYRA FILHO, Roberto. Para um Direito sem Dogmas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1980, p. 32-37.
[4] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. “A Censura da Expressão Linguageira e a Hipertrofia do Direito Penal a serviço do ‘Politicamente Correto’”. IN: VESCOVI, Renata Conde (organizadora). Psicanálise e Direito: uma Abordagem Interdisciplinar sobre Ética, Direito e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud; Vitória: Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, 2013, p. 58.

[5] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “A Segurança Pública e o Direito das Vítimas”. IN: http://emporiododireito.com.br/segurança-publica-e-o-direito-das-vitimas-por-jacinto-nelson-de-miranda-coutinho/

[6] Lembro-me de uma charge que vi há décadas numa revista, em que um acusado pela Inquisição estava sendo supliciado e alguém que passava perguntou: “Ele é acusado de quê?”, ao que um dos torturadores retrucou: “Não sei, ele não quer confessar”!
Em O Processo, de Kafka, há uma passagem antológica dentro dessa mesma temática. Logo no início, quando chegam os dois guardas para prender Josef K., e apelam vagamente a uma lei que nunca é especificada, o acusado reage dizendo: “Essa lei eu não conheço. [...] Ela só existe nas suas cabeças”, o guarda Willem retruca: “Tanto pior para o senhor. [...] O senhor irá senti-la”, e o guarda Franz se intromete e diz: “Veja, Willem, ele admite que não conhece a lei e ao mesmo tempo afirma que é inocente”! KAFKA, Franz. O Processo [1914]. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 15-16.
[7] Não deixa de ser risível a afirmação, tão difundida na sociedade, com decisiva participação da grande imprensa, de que o Brasil é o “país da impunidade”. Como assim, se a nossa população carcerária, estimada em mais de 800.000 aprisionados, está entre as cinco maiores do planeta? Sendo que perto da metade deles se encontra em situação de prisão “provisória” que no entanto se prolonga indefinidamente nas abjetas e desumanas condições das unidades do nosso sistema prisional! Claro que o que existe é uma vergonhosa “seletividade” dos presos: quase todos pobres, pretos, favelados, cujas existências, presumidamente “periculosas”, o sistema de poder vigorante procura simplesmente neutralizar atrás dos muros e das grades dos cárceres. São eles os verdadeiros destinatários das leis penais.
[8] É interessante observar que, no caso do processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff, o STF se tenha limitado a verificar se os ritos processuais estavam sendo observados na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, e se tenha recusado a fazer qualquer apreciação sobre o mérito da matéria (se de fato houve ou não o cometimento de crime de responsabilidade nos estritos termos da lei) – procedimento diametralmente oposto ao utilizado para autorizar o início do cumprimento da pena após a condenação em segunda instância. No primeiro caso, bastou a observância dos ritos formais para o Supremo dar amém ao impeachment da presidenta; no segundo, os ritos legislativos necessários à alteração do dispositivo constitucional foram simplesmente mandados às favas! Ao que parece, o STF ignorou solenemente que o rito, isto é, a forma – sem dúvida de alta importância, podendo inclusive seu descumprimento ser causa de nulidade – é indissociável do conteúdo, e que somente este pode fundamentar uma sentença condenatória ou absolutória. É a forma que está a serviço do conteúdo, e não o contrário.

[11] Nos Tribunais da Inquisição, “ao inquisidor cabe o mister de acusar e julgar, transformando-se o imputado em mero objeto de verificação, razão pela qual a noção de partenão tem nenhum sentido”. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “O Papel do Novo Juiz no Processo Penal”. IN: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (coordenador). Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 23 (Grifos no original).
[12] Um dos traços típicos da paranoia é a certeza inabalável do sujeito em relação a tudo que se relaciona com o núcleo do seu delírio. Essa certeza, inacessível à dúvida, não cede nem diante de argumentos racionais, nem diante de testes de realidade. A certeza paranoica é absoluta e excludente. Daí o seu totalitarismo: uma certeza “toda”, certeza de um “tudo”. Em artigo que publiquei no livro A Resistência ao Golpe de 2016, levantei a hipótese de que aquela certeza inabalável e delirante, típica do perfil da paranoia, pode ser tomada como uma metáfora para pensar certos aspectos do comportamento de juízes, procuradores, promotores e delegados, entre outros, que sucumbem à tentação do estrelato. “A certeza prévia e inabalável de que este ou aquele suspeito é de fato culpado os leva a decidir antes e depois sair à cata das ‘provas’ que corroborem essa certeza antecipada. A inacessibilidade à dúvida fecha a possibilidade de uma retificação dessa certeza, seja pela via de contraprovas materiais, seja pelo recurso a raciocínios lógicos que pudessem evidenciar a inconsistência dela. A isso se soma o imenso gozo de se sentirem heróis, redentores da moral, como tais reconhecidos pela mídia e pelo aplauso social. Com isso, garantias processuais e constitucionais, como a presunção de inocência, o devido processo legal, a ampla defesa etc., são vistas como obstáculos ao andamento do processo, como algo que simplesmente atrapalha, sendo por isso deixadas de lado sem maiores hesitações”. MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. “O Juiz como Protagonista do Espetáculo: a Paranoia como Metáfora para Pensar essa Posição”. IN: PRONER, Carol; CITTADINO, Gisele; TENENBAUM, Marcio & RAMOS FILHO, Wilson (organizadores). A Resistência ao Golpe de 2016. Bauru: Canal 6, 2016, p. 24.
[15] CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do Espetáculo: Ensaios sobre o Poder Penal, a Dogmática e o Autoritarismo na Sociedade Brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 11, 12, 13.
[16] LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 21. Coleção Primeiros Passos.
[17] Comentando a crescente depreciação da advocacia e do próprio direito de defesa, assim se expressa Salah H. Khaled Jr.: “Parece perceptível que um perigoso nó de forças converge para de forma sistemática aviltar, desprestigiar e aniquilar a própria ideia de defesa, como se ela fosse um obstáculo indesejável para a concretização de uma justiça que é identificada com o poder punitivo. [...] A própria advocacia é criminalizada perante a ‘opinião pública’: [...] é a advocacia em si mesma que tem sido vítima de cruzadas morais da grande mídia e até mesmo de entidades representativas de classe que, movidas por um impensado sentimento de solidariedade com pares, tratam os advogados como se inimigos fossem”. KHALED JR., Salah H. “A Criminalização da Advocacia no Brasil”. IN: http://justificando.com/2016/02/12/a-criminalizacao-da-advocacia-no-brasil/

[18] Em nota de repúdio (publicada em 20 de abril de 2016) à conduta do deputado Jair Bolsonaro, o qual fez apologia da tortura ao homenagear, na sessão da Câmara dos Deputados do dia 17 do mesmo mês, na qual foi aprovado o encaminhamento ao Senado do pedido de impedimento da presidenta Dilma Rouseff, ao homenagear, repito, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – ex-chefe do famigerado DOI-CODI na ditadura e notório torturador, como tal reconhecido oficialmente pelo Estado brasileiro –, a Associação de Juízes para a Democracia afirma: “A tortura não significa apenas obter informação; para ser ‘efetiva’ ela deve ser um programa de destruição da personalidade da vítima, e deve ser sistemática e generalizada de maneira a espalhar o medo na população. Assim, a deplorável homenagem proferida pelo senhor Deputado atingiu não só a todas as brasileiras e brasileiros, mas também à própria humanidade, num ato absolutamente degradante e antidemocrático”.

[19] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. “O Judiciário Brasileiro é Seletivo contra o PT”. IN: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/-O-Judiciario-brasileiro-e-seletivo-contra-o-PT-/4/36096

[20] KARAM, Maria Lucia. “A Midiática ‘Operação Lava-Jato’ e a Totalitária Realidade do Processo Penal Brasileiro”. IN: http://emporiododireito.com.br/a-midiatica-operacao-lava-jato-e-a-totalitaria-realidade-do-processo-penal-brasileiro/

[21] ROSA, Alexandre Morais da. “Como Funciona o Mercado Oculto da Delação Premiada”. IN: http://www.conjur.com.br/2016-nov-18/limite-penal-funciona-mercado-oculto-delacao-premiada


[23] ROSA, Alexandre Morais da. “Criminalizar a Magistratura e o MP: um Dia da Caça e outro do Caçador?”. IN: http://www.conjur.com.br/2016-dez-02/limite-penal-criminalizar-magistratura-mp-dia-caca-outro-cacador

[24] Rômulo Moreira vai ao cerne da aberração jurídica e ética que o pretendido teste de integridade representa: “Dentre os seus inúmeros inconvenientes, e a sua manifesta inconstitucionalidade, como visto, essa medida visa a combater delitos sequer iniciados, sepultando um dos mais preciosos dogmas penais, segundo o qual a culpa só deverá ser imputada a alguém pela prática de uma conduta objetiva e subjetivamente típica, antijurídica e culpável, além de fazer tabula rasa da conhecida máxima de Ulpiano: cogitationis poenam nemo paitur, pois não houve, objetivamente, a prática, sequer, de atos preparatórios. Ora, a (pré) disposição para a prática de um ilícito, seja de índole civil, ou penal, não pode ser punida como se já houvesse a sua consumação ou efetiva tentativa. Pretende-se, portanto, a punição de uma suposta intenção criminosa, a partir de uma farsa empregada pelo próprio Estado. Uma encenação, enfim! Se analisarmos mais a fundo esta malfadada medida, observamos que ela parte da teoria lombrosiana de que, a partir do caráter do agente ou de sua personalidade, possa-se aferir a potencial prática de um delito contra a Administração Pública. Será, na verdade, acaso implementada, uma verdadeira ‘caça às bruxas’, disfarçada de legalidade, além da consagração do Direito Penal do Autor, ambas de feição nitidamente fascista. [...] Aliás, há algo ainda mais grave na referida proposta, pois, ao teatralizar uma determinada situação, o Estado estará, na verdade, incentivando a prática criminosa, o que é inaceitável! Como admitir que o Estado tenha a iniciativa de sugerir a um seu funcionário o pagamento de uma propina, por exemplo?”. MOREIRA, Rômulo de Andrade. “O ‘Teste de Integridade’ Proposto pelo Ministério Público Federal e a sua (in) compatibilidade com a Constituição Federal”. IN: http://emporiododireito.com.br/o-teste-de-integridade/

[25] Apud WALLIN, Claudia. Juiz Sueco: “É inacreditável que juízes brasileiros tenham o descaramento de se autoconceder benefícios como auxílio-alimentação”. http://racismoambiental.net.br/2016/03/21/juiz-sueco-e-inacreditavel-que-juizes-brasileiros-tenham-o-descaramento-de-se-auto-conceder-beneficios-como-auxilio-alimentacao/#.WCx6W6DW8jo.facebook

[26] Referindo-se a essa proposta de ajuste fiscal, que, no Senado, onde ora tramita em ritmo acelerado, recebeu a designação de PEC 55, Beatriz Ramos e Cristiano Paixão observam que: “A PEC 55 desconsidera qualquer outra possibilidade que não seja... a PEC 55. É antidemocrática. Parte da falsa premissa de que ‘não há alternativa fora de si mesma’, anula o dissenso. Impede a tomada de decisões que divirjam de seus próprios pressupostos e ultrapassem os limites por ela determinados. Nega o direito de escolha entre diferentes programas de governo, porque exclui da disputa política qualquer projeto que não se encaixe perfeitamente nos critérios por ela traçados. É a sentença de morte da política”. RAMOS, Beatriz Vargas & PAIXÃO, Cristiano. “PEC 55: Contra a Política e contra a Constituição”. http://jota.info/colunas/democracia-e-sociedade/pec-55-contra-politica-e-contra-constituicao-02122016#.WEMNRdoDaAU.facebook

[27] DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

[28] Note-se, de passagem, que “sagrado” e “sacrifício” pertencem à mesma família etimológica: “sacrificar” quer dizer “tornar sacro, sagrado”, ou “ofertar(-se) ao sagrado”.

[29] Para desferir esse golpe mortal no direito de greve, o STF acolheu parecer do ministro Luiz Fux, que argumentou que, “como estamos num momento muito difícil, em que se avizinham deflagrações de greve, é preciso estabelecer critérios para que nós não permitamos que se possa parar o Brasil”.

[30] O respeitado sociólogo português Boaventura de Sousa Santos descreve o golpe brasileiro como um “golpe constitucional-judicial”. “O que mais custa aceitar”, diz ele, “é a participação agressiva do sistema judiciário na concretização do golpe”. Em entrevista à revista Carta Capital de 1º de novembro de 2016, quando veio ao Brasil lançar seu livro A Difícil Democracia (Editora Boitempo), ele apontou, entre diversas medidas neoliberais e antipopulares já implantadas e a implantar no governo Temer, a de “aumentar a repressão quando a população acordar da orgia antipetista e começar a ver, aturdida e chocada, o que efetivamente se passou na sua casa, na sua saúde, na educação dos seus filhos”. Mais adiante ele diz: “A PEC 241 é um escândalo constitucional e político, produto de um descontrolado fundamentalismo ideológico, desprovido de qualquer eficácia e apenas adotado com dois objetivos de alto poder simbólico. Primeiro, mostrar ao povão pobre e empobrecido a impossibilidade de esperar algo do Estado, como se ninguém pudesse lhe prometer nada para além do que a direita está disposta a dar-lhe. [...] Como não há alternativa, os governantes não necessitam do consenso dos cidadãos, basta-lhes a resignação. [...] Segundo, sublinhar com uma risada legislativa o desprezo, o revanchismo e a arrogância com que, do alto de sua vitória, contempla a ruína da esquerda. O excesso desta medida, nunca adotada em qualquer país por um período de 20 anos, deve ser visto pela esquerda como um sinal de debilidade”. E conclui: “Enquanto vigorar o neoliberalismo, é exigida uma vontade revolucionária para conquistar a mais modesta política reformista”. SANTOS, Boaventura de Sousa. “O que mais custa aceitar é a participação do Judiciário no Golpe”.

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