Funcionário demitido da Vale, André Almeida apresentou denúncia ao MPF. [Foto: Alexandre Campbell / Agência Pública]
Documentos mostram que a companhia espiona até jornalistas para defender seus interesses. Confira!
Marina Amaral
Agência Pública
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"Tem que deixar o buraco do rato, não pode encurralar, isso
eu aprendi no Exército." A frase crua expressa a revolta de André Luis
Costa de Almeida, 40 anos, ao explicar por que decidiu revelar o que
sabe sobre a área de vigilância e inteligência da Vale S/A, onde
trabalhou durante oito anos - nos dois primeiros como terceirizado e,
depois, como funcionário do Departamento de Segurança
Empresarial. Ele era responsável pelo serviço de inteligência e gestor
de contratos da Vale com empresas terceirizadas da área, quando foi
demitido, em março de 2012.
"Eu tentei conversar, mandei e-mails, nada: eles prometeram que não
iam me demitir por justa causa, voltaram atrás, depois disseram que
manteriam sigilo sobre o assunto mas chamaram meu novo chefe para dizer
que minha presença dificultaria a relação comercial dele com a Vale.
Tive que sair, não podia prejudicar o cara. Agora eu não me importo com
mais nada: só quero que a verdade apareça", disse logo no primeiro
encontro com a Agência Pública, em meados de maio.
Um ano depois de sua demissão - em 18 de março deste ano -
André Almeida entrou com uma representação no Ministério Público Federal
afirmando que "participava de reuniões, recebia relatórios e era
informado formal e informalmente de diversas situações que considero
antiéticas, contra as normas internas e/ou ilegais", admitindo que "por
pressão sobre o meu emprego, me sujeitei a executá-las", e anexando
demonstrativos de notas fiscais que descrevem entre os serviços
contratados pela Vale à empresa de inteligência Network, do Rio de
Janeiro: a infiltração de agentes em movimentos sociais (no Rio,
Espírito Santo, Minas Gerais, Pará e Maranhão); o pagamento de propinas a
funcionários públicos (para obter informações de apoio
às "investigações internas", na Polícia Federal e em órgãos da Justiça
em São Paulo); quebra de sigilo bancário e da Receita (de funcionários,
até mesmo diretores), "grampos telefônicos" (entre eles o da jornalista
Vera Durão, quando ela trabalhava no jornal Valor Econômico), "dossiês
de políticos" (com informações públicas e "outras conseguidas por meios
não públicos" sobre políticos e representantes de movimentos sociais).
Recusando o café e a água oferecidos em um bar no aeroporto
do Santos Dumont, e atropelando as frases, André contou a história que o
levou à Vale depois de 8 anos de Exército, convidado por um colega de
CPOR, Ricardo Gruba, depois diretor do departamento de Segurança
Empresarial: a central de espionagem da Vale, que emprega cerca de 200
funcionários e utiliza quase 4 mil terceirizados (os números foram
fornecidos por André, a Vale não disponibiliza a informação).
Responsabilizou-se pessoalmente pela instalação de grampos nos telefones
de dois funcionários, um deles o gerente-geral de imprensa, Fernando
Thompson, e revelou a existência de uma série de dossiês contra
lideranças sociais como o advogado Danilo Chammas e o padre Dario, da
ONG Justiça dos Trilhos, de Açailândia, Maranhão; o premiado jornalista
Lúcio Flávio Pinto, crítico aguerrido da atuação da empresa no Pará;
Raimundo Gomes Cruz Neto, sociólogo e agrônomo do Centro de Educação,
Pesquisa, Assessoria Sindical e Popular (Cepasp), em Marabá (PA);
Charles Trocate, líder do MST, e até da presidente Dilma Rousseff,
quando ela era ministra das Minas e Energia. "Algumas informações como
essas sobre a Dilma eram obtidas através de dados públicos, notícias de
jornais, redes sociais, mas outras eram levantadas através de espionagem
mesmo, incluindo a dos infiltrados", diz André Almeida.
ESPIONAGEM EM AÇAILÂNDIA (MA) - Sobre os
demonstrativos de nota fiscal entregues ao MPF, explicou que eles lhe
eram passados pela Network para conferência dos serviços a serem pagos, e
não apareciam discriminados nas notas fiscais emitidas pelo
Departamento de Suprimentos, que ignorava a natureza exata dos serviços
prestados. "Era minha função receber esses dados e conferir junto aos
solicitantes (da Vale), pois, além dos itens fixos, outros eram pedidos
diretamente pelos integrantes do Departamento de Segurança Empresarial
sem passar pelo meu crivo", explicou. Os dados da Network eram
comparados aos das planilhas confeccionadas pelos funcionários da Vale
que solicitavam os serviços, orientação reforçada por um e-mail de
outubro de 2011 do diretor de Segurança Empresarial, Gilberto Ramalho
(que substituiu Gruba em 2011), "visando melhor controle sobre a
apropriação dos serviços prestados pela Network", que dava as instruções
para o preenchimento das planilhas.
"Um exemplo de pedido direto (à Network) foi a infiltração de um
agente no movimento Justiça nos Trilhos pelo Gerente Geral de Segurança
Norte, Roberto Monteiro", diz, mostrando um demonstrativo de junho de
2011, com o pagamento total de R$ 247.807,74 à Network. Ali, na
prestação de contas do Escritório Norte (Pará e Maranhão), no item "Rede
Açailândia", consta a despesa de R$ 1.635,00 referente ao "recrutamento
de colaborador de nível superior, em fase experimental, para atuar
junto à Justiça nos Trilhos e outras atividades dos MS (Movimentos
Sociais) em Açailândia/Maranhão".
Um parêntesis necessário: o planejamento da Vale é dividido em Sistema Norte – que engloba as minas de Carajás de onde são extraídas 90 milhões de toneladas de minério de ferro de alta qualidade, exportado para a Ásia pelo complexo ferro-portuário Estrada de Ferro Carajás – que vai das minas ao terminal de exportação da Vale próximo São Luís do Maranhão; e Sistema Sul – que tem como coração a extração de minério em Minas Gerais, mais da metade da produção total da Vale, levado pela Estrada de Ferro Minas – Vitória até o porto de Tubarão, no Espírito Santo.
Do ponto de vista da segurança, o escritório Norte é o mais
problemático por envolver uma grande extensão de território – entre a
ferrovia e o porto são quase 900 quilômetros, cortando áreas indígenas,
quilombolas e de outras populações tradicionais. Por isso, foi ali que o
atual diretor de Segurança Empresarial da Vale, o cadete-aviador
Gilberto Ramalho, começou a montar o modelo de vigilância da empresa na
ditadura militar, quando ainda era gerente e o polo exportador na
Amazônia passou a operar, em 1985.
Na época, devido à presença intensa de garimpeiros, madeireiros,
grileiros e pistoleiros e a violência permanente, alguns “homens de
visão”, como Tolentino Marçal, começaram a “profissionalizar” essas
milícias através de empresas de segurança – a dele era a Sacramenta e
trabalhou para a Vale até alguns anos atrás, quando o enorme passivo
trabalhista da empresa (mais de 5 milhões de reais) e episódios com
vigilantes armados e de suspeita de desvio de armas levaram a sua
substituição pela Network. Alguns “informantes” avulsos desta e de
outras empresas terceirizadas, porém, em Marabá, Barcarena, Parauapebas e
Belo Horizonte, continuam a prestar serviços para a Vale através da
Network, com seus pagamentos registrados no demonstrativo – como a rede
ABC, de Barcarena/PA (R$4.563,00), “um colaborador e agente” na rede
Marabá (R$3.381,68) e na rede Carajás/Parauapebas (R$ 7.754,11).
“São heranças que a Network se viu obrigada a assumir, pois os
‘toucas ninja’ estavam nessa situação complicada há vários anos em
outras empresas terceirizadas de vigilância. A tão falada reorganização
da Segurança Empresarial feita pela atual gestão, simplesmente trocou o
diretor ( Gruba por Ramalho), todos os demais integrantes, próprios ou
terceirizados, permaneceram fazendo o que sempre fizeram”, diz ele.
Ramalho é um dos funcionários mais antigos da Vale e continua
influente na região. De acordo com André Almeida, embora estivesse
atuando como gerente em Minas Gerais quando ocorreu o Massacre de
Carajás, em 1996, teria sido ele o negociador da operação policial que
resultou no assassinato de 19 Sem Terra – nos autos do processo do
massacre, a Vale aparece como financiadora da operação, destinada a
liberar a passagem dos caminhões da empresa (as minas ficam a cerca de
90 quilômetros do local do crime), obstruída pelos manifestantes
atacados pela polícia.
O MST ainda é o principal alvo da segurança da Vale, ao lado da rede
Justiça nos Trilhos, sediada em Açailândia, no Maranhão, que reúne
diversas entidades de direitos humanos em defesa da população atingida
pelas atividades do polo exportador. Há mais de 2 anos, a rede trava uma
batalha judicial com a Vale contra as obras de ampliação da ferrovia –
feitas sem licenciamento ambiental – para escoar a produção em expansão
das minas de Carajás, impactando ainda mais a vida das comunidades que
vivem no entorno dos trilhos por onde circulam gigantescas composições
ferroviárias, de 9 a 12 vezes por dia, cortando reservas ambientais e
território indígena e quilombola.
Os acidentes ferroviários estão entre os motivos recorrentes de
protesto, mas os trilhos não tem proteção nem passarelas na maior parte
dos casos, como se vê nas fotos. O mesmo demonstrativo inclui R$1.360,00
para “despesas com o envio e manutenção de agente, oriundo de Belém
para Marabá, para a Op. Trilho em Marabá nos dias 12, 13, 14 e 15 de
maio”, dias em que os protestos pelo atropelamento de um idoso
interromperam a Estrada de Ferro Carajás, da qual a Vale é
concessionária.
A rede Justiça nos Trilhos também é uma das articuladoras do
movimento Atingidos pela Vale, do qual participam sindicalistas e
lideranças comunitárias de diversos Estados e de outros países onde a
multinacional atua – são mais de 30 -, comandada pela sede no Rio de
Janeiro. Essa articulação promoveu uma votação mundial pela Internet que
deu à Vale o troféu de “Pior Empresa do Mundo” de 2012, entregue
pessoalmente ao presidente da Vale, Murilo Ferreira.
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