terça-feira, 19 de abril de 2016

Paulo Velten: "o aperfeiçoamento deve ser permanente na vida de todo magistrado"

 
Aprovado recentemente em doutorado na PUC-SP, o desembargador Paulo Velten faz uma análise sobre a importância do aperfeiçoamento profissional  na vida de todo operador jurídico, especialmente do magistrado. Segundo ele, a verdadeira e silenciosa reforma do Poder Judiciário é aquela que se dá por meio da constante atualização e qualificação profissional dos seus quadros, enfatizando que a magistratura maranhense está comprometida com esse ideal. Nesta entrevista, Paulo Velten fala sobre a sua tese de doutorado, cujo tema é “A tutela judicial dos contratos: um contributo para a construção de novos modelos decisórios”, por meio da qual procurou apresentar algumas técnicas para a solução de controvérsias de natureza contratual. Ele fala, também, sobre o novo CPC e dá a sua opinião sobre a proposta de eleições diretas para presidente dos tribunais.
Leia, abaixo, a entrevista:
 
AMMA - O senhor foi aprovado recentemente em curso de doutorado na PUC-SP. Qual a importância de uma aprovação desse nível para um magistrado maranhense?
Desembargador Paulo Velten - Considerando que a minha linha de pesquisa envolveu o tema da intervenção judicial na autonomia privada, o doutorado foi para mim uma oportunidade especial de investigação científica e de reflexão acadêmica sobre os atuais impactos e implicações das decisões judiciais na macroeconomia e na vida de relações, elementos fundamentais para a melhor compreensão do protagonismo exercido pelo Poder Judiciário na sociedade do século XXI. Apesar da atual crise econômica, o Maranhão é um Estado em desenvolvimento, que para seguir nesse processo depende de uma série de fatores, entre os quais um ambiente favorável aos negócios e a boa qualidade de suas instituições, notadamente o Judiciário, que precisa atuar de modo eficiente na tutela dos direitos obrigacionais. Pioneiro da nova história institucional e Prêmio Nobel de Economia de 1993, Douglass North há muito advertia sobre a importância de o Estado assegurar direitos de propriedade, liberdades individuais e o cumprimento de contratos, sustentando que a qualidade de atuação do Estado nessas específicas tarefas é fundamentalmente determinada pela natureza das instituições que o compõem, havendo uma relação direta entre esses fatores e o desenvolvimento econômico eficaz de um país.

AMMA - Qual o tema da sua tese? Fale-nos um pouco a respeito.
Paulo Velten -  O tema da minha tese é “A tutela judicial dos contratos: um contributo para a construção de novos modelos decisórios”. Nela procuro apresentar algumas técnicas para a solução de controvérsias de natureza contratual. A hipótese consiste em demonstrar, com apoio na teoria dos modelos do direito de Miguel Reale, que é preciso restabelecer a conexão com as estruturas normativas concebidas como fontes do direito, atualizando seus conteúdos com base nas transformações operadas na sociedade pós-moderna, em uma integração de fatos segundo valores, a fim de produzir modelos de tutela judicial que levem em consideração a liberdade contratual e o respeito ao cumprimento dos ajustes, que integrem cláusulas gerais e princípios com unidade de sentido e concordância prática, conservando contratos sempre que possível e tomando como critério de maior ou menor intervenção as diferentes situações jurídicas existenciais e patrimoniais, recuperando-se a confiança, a previsibilidade e a segurança jurídica próprias do contrato.
AMMA - Na sua avaliação, qual a importância do magistrado, seja juiz ou desembargador, manter-se sempre em permanente atualização de conhecimento, quer seja na vida acadêmica ou mesmo apenas para aplicar no exercício da magistratura?
Paulo Velten - O esforço pelo aperfeiçoamento profissional deve ser um processo permanente na vida de todo operador jurídico, especialmente do magistrado, cuja função é interpretar e aplicar corretamente o direito, distribuindo Justiça. Penso que a verdadeira e silenciosa reforma do Poder Judiciário é aquela que se dá por meio da constante atualização e qualificação profissional dos seus quadros. E a magistratura maranhense está comprometida com esse ideal. Basta ver o bom nível dos debates e o grande interesse demonstrado pelos colegas nos mais variados cursos oferecidos pela Escola Superior da Magistratura do Maranhão. Por isso, temos que prosseguir com o trabalho e ampliar a oferta de cursos de formação e aperfeiçoamento, incentivando a participação de um número cada vez maior de colegas magistrados e servidores, desde a fase de concepção dos cursos e seminários, por meio das enquetes promovidas pelos Núcleos de Estudos Avançados, até a efetiva realização desses eventos com o maior aproveitamento possível. Também temos que intensificar a interiorização das ações da Escola, seja por meio de cursos presenciais ou em plataforma digital, sem esquecer que a sede da instituição deve ser um local de encontro da magistratura, um palco de debates e reflexões sobre as grandes e atuais questões do Direito e interdisciplinares, um centro catalizador e difusor de conhecimento, onde cada colega se sinta bem recebido e estimulado a oferecer sua contribuição. Muito disso já acontece hoje e estamos avançando cada vez mais, fruto do trabalho contínuo das últimas administrações da ESMAM. Precisamos, ainda, estimular a produção intelectual da magistratura maranhense, oferecendo, para tanto, cursos de pós-graduação, lato e stricto sensu, realizados diretamente na Escola ou por meio de convênios com instituições de ensino reconhecidas. Esse será, sem dúvida, o nosso grande salto de qualidade na consolidação de uma ESMAM inclusiva e a serviço de todos.
AMMA - Como o senhor concilia a vida acadêmica com o exercício da magistratura? Exige muitos sacrifícios pessoais?
Paulo Velten - Conciliar a vida acadêmica com o exercício da magistratura não é fácil. Sem dúvida requer sacrifícios pessoais e trabalho dobrado, mas em compensação é extremamente útil e gratificante, pois se é verdade que o contato sistemático com os grandes modelos dogmáticos desenvolvidos no universo acadêmico auxilia na elaboração da norma de decisão, é igualmente verdadeiro que a experiência obtida na vastíssima atividade judicante fornece os mais variados exemplos de aplicação prática de conceitos teóricos doutrinários, constituindo um valioso recurso para o ensino universitário. Procuro, assim, conciliar as diferentes atividades por meio desse intercâmbio. Clóvis do Couto e Silva dizia que a decisão judicial é a matéria-prima dos juízes, formada com a contribuição dos juristas. É de ambos os elementos que resulta o equilíbrio no desenvolvimento das instituições jurídicas.
AMMA - Recentemente, a AMMA fez uma pesquisa em que a maioria dos magistrados maranhenses acha que que o novo CPC vai piorar a prestação jurisdicional. Na sua avaliação, procede essa preocupação da magistratura maranhense?
Paulo Velten - É natural que surjam resistências e contrariedades diante do novo, sobretudo quando a novidade é a lei instrumental civil do país, que disciplina o passo-a-passo, o caminho a ser necessariamente trilhado, sob contraditório e ampla defesa, para a solução justa das controvérsias, o que na atual quadra só é possível por meio de um processo igualmente justo, équo e democrático, que aprofunde o diálogo entre as partes e o juiz por meio da cooperação. Para usar a linguagem de Habermas, o processo atual deve ser emancipador de comunicabilidade. O novo Código busca estabelecer uma sintonia fina com a Constituição e conferir maior grau de organicidade e coesão ao sistema. Alguns objetivos da fase de anteprojeto, segundo a professora Teresa Arruda Alvim Wambier, à época relatora-geral, foram plenamente mantidos na nova lei, que aprimora o método, ressalta a importância do direito material e gera facilidade. O novo CPC também faz o processo render com uma solução de mérito e melhora a performance do Poder Judiciário, orientando juízes e tribunais a observarem e zelarem pela sua própria jurisprudência e pelos precedentes das Cortes de Superposição, gerando uma obrigação de respeito, que desponta como uma função contemporânea do Judiciário, de fundamental relevo para o desenvolvimento do chamado Estado Constitucional, aquele que submete todos ao Direito, inclusive aos precedentes judiciais, e não apenas à lei, como era típico do Estado Legislativo de outrora. Portanto, não creio que o novo CPC vá piorar a prestação jurisdicional. Ele vai, na verdade, exigir uma mudança de cultura e de postura por parte de todos os atores do processo, especialmente do juiz, responsável pela sua condução. Tenho absoluta convicção que a magistratura maranhense, comprometida com os ideais do Estado Constitucional, saberá fazer o uso adequado do novel Diploma.

AMMA -  O senhor acha que o novo CPC tem falhas ou foi pouco discutido antes de ser aprovado?
Paulo Velten Como toda obra humana, é evidente que o Código possui falhas, muitas, inclusive, surgidas durante o processo legislativo, como, por exemplo, a disposição que retira a eficácia imediata da sentença como regra, deixando de fortalecer a atuação da magistratura de 1º grau, nesse ponto. Mas isso não é razão para desânimo, pois os juízes terão um papel mais ativo na gestão e na condução do processo, coordenando o diálogo entre as partes e interferindo mais intensamente na formação da ratio decidendi que integrará os precedentes judiciais. A decisão de antecipação da tutela também se fortalece, podendo ser suficiente para estabilizar a demanda. Afora isso, é preciso lembrar que a evolução de uma legislação codificada é resultado da interferência e contribuição dos demais modelos do Direito. O grande professor Renan Lotufo dizia em suas aulas na PUC/SP que os códigos geralmente não surgem muito bons, mas, pouco a pouco, com o trabalho da doutrina e da jurisprudência, vai-se lendo o que neles não está escrito, deixando-se de ler o que está e, no final de certo tempo, por força da sua utilização, da comutação de suas lacunas, da eliminação de certos elementos da sua literalidade, o código vai melhorando e se tornando uma boa lei. Acho que o velho mestre paulista aponta um bom norte, bem na linha do caráter prospectivo dos modelos jurídicos de Miguel Reale.
Por fim, respeito, mas não concordo com os que dizem que o Código foi objeto de pouca discussão. Muitas novidades nele inseridas, como o IRDR, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, a ampliação do amicus curiae, a antecipação da fase de conciliação, a prevalência da tutela específica sobre a de natureza reparatória e a flexibilização dos procedimentos, já eram debatidas em diversos congressos e simpósios de processo civil, como os promovidos pelo IBDP, desde a fase de reformas pontuais do CPC revogado. O anteprojeto também foi objeto de várias audiências públicas realizadas em todas as regiões do país, sempre contando com a maciça presença da comunidade acadêmica, das mais diversas entidades de classe, de autoridades de todos os poderes do Estado e de profissionais do universo jurídico, isso desde poucos meses após a nomeação da comissão, em setembro de 2009. Comissão que, aliás, foi composta, em sua maioria, por magistrados de carreira, a começar por seu presidente, todos profissionais tarimbados, forjados no labor diário do fórum e nos bancos acadêmicos. Sem desprezar a importância de toda e qualquer crítica à nova legislação e às vicissitudes do processo legislativo, penso que o momento é de abandonarmos antigas certezas e opiniões preconcebidas, é hora de abrirmos nossas mentes para o novo e encará-lo com boa disposição, ânimo para o estudo e maturidade para o debate esclarecido em torno do novo modelo jurídico.

AMMA - Na sua visão de estudioso do Direito Civil e Processo Civil, quais são as principais causas da lentidão da justiça brasileira? E por quê?
Paulo Velten - São tantos os fatores, que é difícil resumir tudo nesse espaço. O mais conhecido é o excesso de demandas gerado pela conhecida omissão da Administração Pública em assegurar direitos previstos na Constituição e nas leis, pela ausência de respeito aos direitos consumeristas por parte das chamadas empresas totais e também pelo hiperconsumerismo que tudo judicializa, pela cultura da litigância e falsa crença na solução estatal como única alternativa e também pelos criadores de demandas frívolas ou por aqueles que, se aproveitando do caos, simplesmente buscam retardar o cumprimento de suas obrigações por meio do processo judicial. Outra causa menos citada e pouco debatida diz respeito à falta de infraestrutura adequada da Justiça, máxime a de 1º grau, que precisa receber maior atenção da cúpula do Judiciário e dos órgãos de planejamento estratégico, e não só com relação à construção de prédios, mas precipuamente no que toca à infraestrutura de funcionamento das unidades. É preciso capacitar e motivar o pessoal de apoio, treinar servidores, padronizar procedimentos, identificar as particularidades de cada unidade, apostar na especialização, redistribuir e melhor aproveitar a força de trabalho. Não é racional nem faz sentido que unidades menos demandadas tenham a mesma estrutura de pessoal e equipamento que unidades mais acionadas. Se os recursos são poucos e a carga de trabalho ingente, é necessário melhor direcionar e conferir maior qualidade aos gastos. Também precisamos criar uma burocracia meritória e estável, capaz de contratualizar resultados e fazer a máquina funcionar de forma automática, com impessoalidade e o menor dispêndio de energias possível do magistrado, que necessita dedicar maior espaço da sua jornada de trabalho para a atividade-fim, de entrega da prestação jurisdicional adequada, efetiva e em tempo razoável. Hoje, no entanto, ainda observamos o juiz pesadamente consumido pela atividade-meio, compungido ao preenchimento de relatórios disso e daquilo, com alimentação de sistema de informática, pedidos de materiais de expediente de uso diário etc., é tanta coisa e cobrança, que quase não sobra tempo nem oportunidade de reflexão para o mais importante, que é o exame atento do caso e a elaboração da norma de decisão, exatamente o serviço que, na ponta, chega ao cidadão, que sofre com a demora na resposta do Estado e fica com uma impressão negativa e quase sempre indevida acerca do trabalho dos juízes. Outro problema pouco debatido é a nossa forma quase artesanal de trabalho, que se revela injustificável, considerando os cerca de 100 milhões de processos em andamento nas diversas instâncias do Judiciário. É preciso acabar, como sucedeu em boa parte dos países centrais, a exemplo da reforma italiana de 2009, com as decisões logorreicas, longas e intermináveis, mas que, em geral, pouca conexão guardam com o caso concreto e que, por vezes, também desprezam a jurisprudência, precedentes e até súmulas vinculantes. Decisão longa não é necessariamente decisão fundamentada, e o inverso também é verdadeiro. A fundamentação deve se limitar àquilo que seja relevante para a resolução das questões postas à análise judicial. Nesse aspecto, o novo CPC, se bem interpretado e corretamente aplicado, pode constituir um importante fator de mudança.

AMMA - A pesquisa da AMMA também revelou que 89% dos magistrados do Maranhão querem eleições diretas para Presidente do Tribunal de Justiça. O senhor defende a mesma opinião? 
Paulo Velten - A rigor, hoje as eleições para Presidente dos Tribunais já são diretas, mas restritas aos seus próprios membros e tendo como elegíveis apenas os mais antigos, em número correspondente ao dos cargos de direção, proibida a reeleição. O que a Proposta de Emenda à Constituição nº 187/2012 faz é ampliar esse colégio eleitoral para todos os magistrados vitalícios em atividade, de 1º e 2º graus, colocando no universo de elegíveis todos os membros do Tribunal Pleno. Essa proposta chega a ser mais abrangente que o anteprojeto do novo Estatuto da Magistratura, que prevê a indicação, pelos juízes de 1º grau, de uma lista tríplice para a disputa da Presidência dos Tribunais de Justiça dos Estados. Considerando, como aqui já dito, que boa parte dos problemas da Justiça localiza-se no 1º grau de jurisdição, natural que os colegas dessa instância, que vivenciam mais de perto as dificuldades, queiram se sentir melhor representados na Administração do Judiciário. A regra, portanto, busca trazer maior legitimidade para a representação e gestão do Poder Judiciário, por isso, merece ser levada em conta e debatida tanto no âmbito do parlamento como no seio da magistratura, inclusive, com o estabelecimento de regras claras e limites de atuação dos elegíveis no período que antecede às eleições, de modo que a regra de escolha democrática não se converta em uma disputa paroquiana, em um vale tudo eleitoral típico das eleições mundanas que conhecemos. Necessário lembrar que o presidente de um tribunal, mais que um representante de classe, é chefe de um Poder de Estado com todas as responsabilidades inerentes à relevância do cargo. Mas tenho plena convicção e confiança de que a magistratura, como um todo, terá o discernimento, maturidade e equilíbrio necessários para escolher os seus representantes.

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