quinta-feira, 2 de junho de 2016

Maio oito meia (11) – Dez anos de festivais de música no campus

Eram tempos de turbulência na política e muita inquietação na comunidade acadêmica. A voz ativa da juventude ressoava pelos becos e palcos improvisados das universidades. Na UFMA, as coisas passavam naturalmente pelo curso de Comunicação Social, vanguarda involuntária dos movimentos estudantis nos anos 1980. As decisões políticas e conspirações culturais estavam concentradas entre a Área de Vivência do campus, onde também ficava a sede do DCE, o Auditório “Jarbas Passarinho” (no Centro de Ciências Humanas, o Castelão) e o prédio do Centro de Ciências Sociais, o afamado Pimentão, núcleo-base de Comunicação e de outros cursos como Direito, Serviço Social, Ciências Sociais, Pedagogia, Economia, Ciências Contábeis e Biblioteconomia.

A Área de Vivência do campus era quase uma segunda casa dos estudantes, com um grande salão para eventos e o R.U. ao lado; na foto, lançamento de livro de poesias de Moisés Matias

Nesse território, o ambiente universitário reverberava os grandes festivais de música transmitidos via TV até meados daquela década. Som, fúria, ternura, protesto, irreverência e, quem sabe, trampolim para uma carreira profissional na música. Havia interessados dentro e fora do ambiente acadêmico, e os festivais, com seus altos e baixos, ocuparam por alguns anos essa arena fértil da Universidade Federal do Maranhão.

1979, o I Fump – Um homem no meio da sala

O primeiro Festival Universitário de Música Popular, o Fump, ocorreu no segundo semestre de 1979, em meio às manifestações em defesa da meia passagem no transporte coletivo de São Luís. Protagonistas do movimento, estudantes da UFMA, entre desconfiados e em permanente estado de alerta, apesar das aulas suspensas pela reitoria, enxergavam aqui e ali a sombra da Polícia Federal. A ditadura militar ainda viva ora provocava medo na juventude, ora a empurrava para embates e passeatas. A música era o caminho menos traumático para o protesto. Mesmo com a censura à espreita, as letras das canções que embalaram o I Fump carregavam no teor da mensagem política.

Racismo, raízes africanas, desigualdades sociais, opressão e o isolamento do Nordeste eram temas presentes na maioria das músicas inscritas no I Fump. No palco do campus estavam nomes como José Pereira Godão, Rogério do Maranhão, Norberto Noleto (que levou ao palco a canção “Papagaio”), Raimundo Makarra (com a toada “Novilho mágico”) e Zezé Alves. Como em qualquer festival de música, a polêmica ficou reservada para a etapa final, com a classificação pelo júri oficial da canção “Sentinela”, de José Pereira Godão, interpretada por Gabriel Melônio (com Eliane no vocal), em primeiro lugar. Em verdade, a música era de autoria de Godão e César Teixeira, que não assinara a composição por uma exigência do regulamento do festival: apenas alunos da universidade poderiam concorrer; e César, àquela altura, ainda não havia chegado aos bancos da UFMA. Antes do resultado, porém, os concorrentes tentaram uma espécie de “acordo”: não haveria vencidos ou vencedores para o quesito aclamação popular, e o prêmio seria compartilhado entre os finalistas. A ideia era dizer não ao caráter competitivo do evento, à velha fórmula dos festivais tradicionais. Na prática, a premiação seguiu o rito da tradição. No final das contas, o público elegeu como melhor música “Negritude”, de Cunha Santos, interpretada por ele e a irmã Val Moreno.

“Sentinela” (José Pereira Godão e César Teixeira)
Havia um homem no meio da sala
Os braços cruzados caídos no peito
E havia uma vela, um santo e uma flor
Na sombra da vela, um grito de dor
Por certo o castigo dos deuses do céu
Quem sabe uma força maior que a razão
E a pobre viúva curvada na rede
Espera um milagre com o terço nas mãos
Umbora meu filho, que os demônios te esperam
Pelos muros no escuro da manhã...
Leva os teus delírios, ferramentas pra lutar
Que o teu brilho, que brilho, vencerá!


(depois da apresentação original no I Fump, a letra de “Sentinela” ganhou duas outras versões: uma de César Teixeira, outra de Godão adaptada para o espetáculo “Natalina”)

Após o I Fump, o festival de música do campus entrou no limbo por sete anos. Por falta de incentivo da universidade. E pelas limitações estruturais do Diretório Central dos Estudantes, a quem de fato cabia a organização do evento. A música era um ingrediente que fazia bem ao cardápio do movimento estudantil, afinal atraía a simpatia dos universitários avessos à política. Era uma tática de aglutinação da militância. Esse hiato musical fora interrompido no dia 17 de dezembro de 1985, quando surgiu a primeira edição do projeto Sexta Seis e Meia, idealizado pelo DCE, da recém empossada gestão “Alerta: jacaré parado vira bolsa”, que tinha entre os diretores Arlete Borges (presidente), Aníbal Lins (secretário geral), Celso Reis (secretário de cultura), Márcio Jerry Saraiva Barroso (secretário da área de Ciências Sociais) e Cláudia Durans (secretária de estágio).

1986, o II Fump – A vida é trampolim

O projeto Sexta Seis e Meia foi o embrião do II Festival Universitário de Música Popular. Pelo palco do auditório “Jarbas Passarinho”, no primeiro ano do projeto, passaram artistas como Betto Pereira, Nosly, Zeca Baleiro, Roberto Ricci, Ângela Gullar, Omar Cutrim, o grupo Asa do Maranhão e o mímico Gílson César, entre outros. “[o projeto Sexta Seis e Meia] Surgiu como uma alternativa para o movimento estudantil que precisava de um canal novo, de uma linguagem diferente que substituísse o já desgastado discurso na base do chavão, e aproximasse mais os estudantes de suas entidades”, afirmava Deane Fonseca, da comissão de cultura do DCE, em entrevista ao jornal “O Estado do Maranhão” em novembro de 1986. “A gente precisava se virar, agitar alguma coisa criativa que espantasse um pouco esse clima terrível de apatia e tristeza aqui no campus”, dizia ela.

Com o sucesso das seguidas edições do Sexta Seis e Meia e uma comissão especialmente criada para os temas de cultura, formada por Rai Vasconcelos (curso de Serviço Social), Deane Fonseca (Letras), Márcio Jerry (Comunicação), Claudete Brandão (Biblioteconomia) e Adelaide Coutinho (Educação Artística), o DCE dispunha de base para a realização de um novo festival de música. E assim veio a lume o II Festival Universitário de Música Popular, com eliminatórias nos dias 26 e 27 de novembro e finalíssima em 28 de novembro de 1986.

Sob a direção do produtor cultural Jorge Capadócia e com apoio da Universidade FM, do Departamento de Assuntos Culturais e Associação dos Professores da UFMA, o II Fump deixava um alerta aos candidatos, antes mesmo da inscrição: só poderiam participar do festival compositores que ainda não tivessem músicas gravadas em disco. O texto do projeto realçava o ufanismo impregnado na estrutura do festival. “Poucas manifestações artístico-culturais brasileiras são tão expressivas quanto a nossa música popular, que assume em seu substrato elementos oriundos das três grandes raízes da nossa civilização: o branco, o negro e o índio. Com efeito, os componentes dessas três raízes, tão diferentes entre si, encontram-se reunidos, com rara felicidade, nessa expressiva, riquíssima e vibrante forma de manifestação da alma do nosso povo”, asseverava a organização do festival.

O texto coincidia com a pouca inventividade das canções concorrentes, mais próximas dos modelos já exaustivamente brandidos nos festivais da TV. Aparições folclóricas, melodias repetitivas e letras com pitadas de regionalismo. Das 78 composições inscritas, o júri formado por César Teixeira, Chico Pinheiro, Wellington Reis, Francisco Padilha e Celso Borges selecionou 25 músicas para as duas eliminatórias, assim distribuídas:

Primeira eliminatória
“Igarité”, de Jorge do Rosário, Augusto Anceles e Antônio Marco;
“Terra e paz”, de Jockson Launé Macedo;
“Quase livre”, de Darlan Andrade e Benedito Júnior;
“O que é, o que é”, de Naldinho Pinheiro;
“Águas claras”, de Ricardo Goulart e Henrique Duailibe;
“Toada alegre”, de Frederico Américo de Oliveira;
“Préla”, de Norberto Noleto;
“Berimbau chamou”, de Edilson Ferreira Mendes;
“Pontes, parceiros e partes”, de Mano Borges, Marco Duailibe e Edinho Habibe;
“Tripa seca”, de Sebastião Carnégie,
“Bamba, beleza da Ilha”, de Kilner, Nonato e José Antônio;
“Jardim de cores”, de Hélson Rodrigues;
“Resposta para quem fala mal de mim”, de Gerô.

Segunda eliminatória
“Despertar”, de Flávio Barbosa Pinheiro;
“Filho da lua”, de Ângela Gullar e Omar Cutrim;
“Ponta d’Areia”, de William Pereira dos Anjos e Maninho;
“Flor de liberdade”, de Karina Vaz Guimarães;
“América Latina”, de Erivelton Lago;
“Esperança”, de Ubiraci Silva Nascimento;
“Conquistar”, de Dênis Marques;
“Fim”, de Márcia Santos;
“Estopim”, de Antônio Alfredo Fonseca e Sérgio Pinto;
“Querubim”, de Zeca Baleiro;
“Samba diferente”, de Lula Bossa;
“Pulsação”, de Domingos Santos e Yara Campos.

Plateia atenta aos concorrentes do II Fump

Da primeira eliminatória, realizada no auditório “Jarbas Passarinho”, com ingressos ao preço de cinco cruzados (moeda criada no governo do então presidente José Sarney), foram classificadas as músicas “Igarité”, “Préla”, “Pontes, parceiros e partes”, “Bamba, beleza da ilha” e “Resposta para quem fala mal de mim”. Da segunda eliminatória, também no palco do “Jarbas Passarinho”, saíram as canções “Filho da lua”, “Ponta d’Areia”, “Flor de liberdade”, “América Latina” e “Querubim”. Na finalíssima, aberta ao público na área livre do Pimentão, Zeca Baleiro levou o primeiro lugar (oito mil cruzados) com “Querubim”, música que também deu a Fátima Passarinho o prêmio de melhor intérprete (dois mil cruzados). Em segundo lugar (cinco mil cruzados) ficou “Igarité”, de Jorge do Rosário, Augusto Anceles e Antônio Marco, interpretada por Rosa Reis e o pessoal da Laborarte, canção que também levou o prêmio de melhor arranjo (dois mil cruzados). E em terceiro lugar (três mil cruzados) o júri classificou a música “Filho da lua”, de Ângela Gullar e Omar Cutrim, interpretada por Ângela.
“Querubim” (Zeca Baleiro)

feito passarim
subir as tores de marfim
estrela de brilho carmim
assim assim
doce com cravim
água de “xêro” de alecrim
abre tuas asas sobre mim
guarda tua luz de alfenim

traz de san martim
um travo de amendoim
mais um enfeite de morim
no teu cabelo pixaim
um beijo de festim
com lua nova até que enfim
comer beiju beber cauim
pra lá de quixeramobim

adiar o fim
pintar a casa e o camarim
de celofane e de cetim
sim não não sim
hálito de gim
saúde de tupiniquim
deita teu corpo no capim
faz sol se o tempo for ruim

vem meu querubim
me faz amor me faz do-in
costura meu terno de brim
vida é trampolim
planta no xaxim
incenso mirra e benjoim
foi pra te ver sorrir que eu vim
abrir as portas do jardim
e verdejar


Fátima Passarinho e Zeca Baleiro na interpretação de "Querubim"

Erivelton Lago defendeu "América Latina"

Definidos os vencedores, o show de encerramento do II Fump ficou por conta de Nosly, Josias Sobrinho, Roberto Ricci, Gabriel Melônio e Cláudio Pinheiro. “O sucesso do festival é também uma prova inconteste da vitalidade do movimento estudantil”, comemorou Márcio Jerry, logo após a divulgação do resultado. E com um certo alívio. O II Fump chegara ao fim, apesar do pouco dinheiro e muita conta pra pagar: prêmios aos vencedores, cachê para júri, músicos da banda e artistas convidados para a final, além de despesas com som, palco e iluminação. “O que os políticos gastam em suas campanhas e não estão nem aí... Mas eles não apoiam esse tipo de iniciativa. Sempre é o orçamento que já estourou ou outra desculpa. Tratam-nos como se estivéssemos pedindo esmolas. Não são sinceros nunca”, desabafou Deane Fonseca em reportagem de Ademar Danilo no jornal “O Estado do Maranhão”.

Em texto publicado no jornal “O Imparcial” em dezembro de 1986, o produtor Jorge Capadócia chamava a atenção dos “novos talentos” para que fossem “mais criteriosos na elaboração de suas músicas” inscritas em festivais. Sinal de fumaça na banca de jurados? Talvez. Do festival ficou a revelação, para além dos muros do campus, de novos nomes na música maranhense - alguns deles já bem experimentados no circuito acadêmico, mas ainda desconhecidos lá fora. Com “Querubim”, Zeca Baleiro embolava trigo, joio e carmim e emprestava ao festival um fermento de modernidade.

Embalado pelos louros do festival, Márcio Jerry foi às urnas poucos dias depois de encerrado o II Fump. Com a eleição no DCE marcada para o dia 10 de dezembro, Jerry concorria à presidência da entidade pela chapa “Axé”, apoiada por Arlete Borges e umbilicalmente ligada à corrente Construindo, do Partido dos Trabalhadores (PT). Na outra ponta estava a estudante Lúcia Helena, liderando a chapa “Menos blá-blá-blá e mais ação”, ligada à corrente Viração do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Em 1986 havia pouco mais de 7 mil alunos matriculados na UFMA, dos quais cerca de 4 mil frequentavam aulas regularmente. E, destes, apenas 2.675 estudantes decidiram ir às urnas para eleger a nova diretoria do DCE.

Integrantes da chapa "Axé" em plena campanha: Márcio Jerry, Aristeu, Flávio Dino, Paulo de Tarso, João de Deus, Rai Vasconcelos, Dimas Salustiano e Magno Moraes

Cenário do campus nas eleições para o DCE

Como sinal do forte efeito do festival de música, as principais bandeiras da chapa “Axé” foram “a liberdade de criação, o compromisso com a arte maranhense e o fim do autoritarismo na universidade”. Fazia parte do plano a luta pela manutenção do restaurante universitário, o R.U., ameaçado de fechamento pela reitoria da UFMA sob a alegação de falta de recursos. Sem restaurante, de barriga vazia, não haveria revolução, liberdade de criação ou compromisso com festivais. Os estudantes queriam diversão e arte, mas também comida. A chapa “Axé”, que tinha em seus quadros o estudante de Direito Flávio Dino, saiu-se vencedora da eleição com uma boa diferença de votos. A nova diretoria do DCE tomou posse no dia 19 de dezembro na Área de Vivência do campus.

1987, o III Fump – “Quero ser governador!”

Com a fórmula pronta, e novamente com o apoio discreto do Departamento de Assuntos Culturais da UFMA, em novembro de 1987 o DCE deu início ao III Festival Universitário de Música Popular. Duas eliminatórias, nos dias 19 e 20 de novembro, e uma finalíssima no dia 4 de dezembro. O júri pré-classificatório, formado por Joãozinho Ribeiro, César Teixeira, Wellington Reis e Chico Pinheiro, teve bastante trabalho para escolher 24 músicas entre as 150 composições inscritas. As duas eliminatórias ficaram assim definidas por sorteio do júri:

Primeira eliminatória
“Sírius”, de Celso Reis;
“Cavaleiro do Rei”, de Norberto Noleto e Valdivino Brás;
“Salve-se quem puder”, de Naldinho Pinheiro;
“Calendário”, de Gilberto Benvindo;
“Trilha, trilha... Solidão”, de William Pereira dos Anjos e Maninho;
“Solidão”, de Saci Teleleu e Jorge do Rosário;
“Gota de lágrima”, de Augusto Bastos;
“Gritos”, de Zezé Alves e Paulinho Lopes;
“Quero ser governador”, de Gerô;
“Raça”, de Roberto Ricci;
“Lua”, de Maurício Ewerton Filho;
“Fátima”, de Raimundo Alberto Teixeira Moraes.

Segunda eliminatória
“Esperando a manhã”, de José Antônio Forty;
“Razão da terra”, de Zezinho Chagas;
“Dança”, de Augusto Anceles e Jorge do Rosário;
“Rei Momo”, de Flávia Costa;
“Uma palavra”, de Mano Borges e Marco Duailibe;
“Viajeiros do som”, de Benedito Júnior e Darlan Andrade;
“Parnarama”, de Gilberto Benvindo;
“Punk papista”, de Erivaldo Gomes;
“Fotografia”, de Flávio Pinheiro;
“Rapsódia”, de Rodney Mariano e Salgado Maranhão;
“Educando”, de Eliazar de Carvalho;
“Catamarã’, de Alzira Amélia.

O festival não era, àquela altura, o melhor caminho para a produção musical maranhense, na avaliação do presidente do DCE. Márcio Jerry condenava o aspecto competitivo dos festivais que, segundo ele, reproduziam “a ideologia de disputa comum em todos os segmentos da sociedade”. Na teoria, a saída era a promoção de grandes mostras de arte na universidade, com oportunidade de exibição livre de trabalhos artísticos, sem o olhar falível de um júri. Mas a teoria não pagava a conta dessas alternativas edênicas. E não fechava o caixa do DCE!

Na prática, a UFMA vivia aquele período em estado de greve. Funcionários de braços cruzados, em luta por reajuste salarial, e professores e alunos em campanha por eleições diretas para reitor da universidade. “Não podemos passar mais quatro anos com um reitor biônico”, diziam os dirigentes estudantis inconformados com a longevidade de José Maria Cabral Marques no Palácio Cristo Rei, a sede da reitoria da UFMA.

Com as ameaças de greve, corredores quase esvaziados e um cenário político tenso na UFMA, o DCE decidiu não correr riscos. Trocou o ambiente fechado do auditório “Jarbas Passarinho” pela praça principal do campus, com acesso livre para estudantes e comunidade. O III Fump, com direção musical e coordenação de Henrique Duailibe e Jorge Capadócia, contou com uma banda-base de acompanhamento formada por Maninho (guitarra e viola de dez cordas), Cláudio Ribeiro (baixo), Jeca (percussão) e Fleming (bateria). Henrique Duailibe (teclados), responsável pelos arranjos da maioria das músicas, também assinou o tema de abertura do festival.

Sem “reserva de mercado” imposta no regulamento, das 24 músicas selecionadas preliminarmente pelos jurados, apenas oito composições tinham o dedo de estudantes da UFMA. Para o show da primeira eliminatória foram escalados os artistas Fauzi Beydoun e Roberto Brandão. Na segunda eliminatória cantaram Joãozinho Ribeiro e César Teixeira. E na finalíssima, o convidado do DCE a subir ao palco, no intervalo que antecedeu a divulgação do resultado, foi o vencedor do II Fump, Zeca Baleiro. Os jurados Edir Lobato, Joãozinho Ribeiro, Sônia Almeida, Chico Pinheiro e Ângela Gullar escolheram as seguintes músicas como vencedoras do III Fump: 1o lugar – “Sírius”, de Celso Reis, uma toada de bumba-meu-boi no sotaque de orquestra; 2o lugar – “Uma palavra”, de Mano Borges e Marco Duailibe; 3o lugar – “Raça”, de Roberto Ricci. E mais: melhor intérprete – Rita Ribeiro (hoje Rita Benneditto) e Raimundo Alberto Moraes, por “Cavaleiro do Rei”; e 1o lugar por aclamação popular – “Dança”, de Augusto Anceles e Jorge do Rosário.
“Sírius, a estrela cintilante” (Celso Reis)

O teu amor morena
Me mata de saudade
Deixa o meu coração
Como noite de luar
Tem brilho de estrela cintilante
No azul celeste
Onde a terra se veste
Da mais rica criação

Vem meu amor
Ser a menina
Do teu cantor
És bailarina
Os teus olhos
Têm o verde da campina


Celso Reis e o seu indefectível chapéu

Em 6 de dezembro de 1987, dois dias depois da finalíssima, o jornalista Sérgio Castellani, frequentador reincidente de maratonas etílico-culturais do campus, publicou artigo no jornal “O Estado do Maranhão” tecendo provocações acerca do III Fump. Sob o título “Um festival polêmico”, de saída o texto atirava na exagerada calmaria que cobria de assombro o circuito das artes em São Luís: “Esta cidade estava tão monótona, tão acostumada a ficar quieta com as dezenas de absurdos que já viraram rotina...”. Segundo o jornalista, um festival de MPB “em que tudo é mascarado e direitinho não interessa a ninguém”. Pequenas fraturas expostas refletidas no olho nu da plateia. O III Fump não conseguiu escapar da boa polêmica, uma espécie de marca registrada dos festivais de música. Eis alguns trechos do artigo de Castellani:
“O problema não é o Festival em si, mas sua estrutura, sua tendência ao eleger o ‘melhor’. Mas, melhor de quem? De um júri que nem sabemos quem é? De pessoas ‘capacitadas’ para dizer: esta é a melhor música, esse o melhor intérprete?”

“A verdadeira arte é muito superior a critérios do que é melhor ou pior – ela é em sua essência a verdadeira arte”

“O III Fump mostrou também a mediocridade da aparelhagem de som disponível em São Luís. A ‘melhor’ e mais ‘potente’ se viu bloqueda/fundida com a incompetência em manuseá-la. Foi assim que Zeca (que puta show, hein meu!), Fátima Almeida, Augusto e tantos outros, ao invés de cantarem, botaram a boca no mundo para falar... E sempre é bom saber que os músicos daqui pensam e também sabem protestar, chiar, exigir melhor qualidade...”

“E isto só foi possível com a realização do III Fump, e com o trabalho das pessoas que o fizeram acontecer. Foi Jorge [Jorge Borges], Raimunda [Rai Vasconcelos], Márcio [Márcio Jerry], Flávio [Flávio Dino], e tantos outros...”

“É necessário salientar, mais uma vez, a inoperância da administração da UFMA. Cumprindo fielmente seu papel a serviço da burguesia, cria cada vez mais obstáculos para o surgimento de espaços. E isto o DCE – com falhas – conseguiu criar”

“Pra terminar, um parabéns para Roldney Mariano e Salgado Maranhão, pela música ‘Rapsódia’. Uma coisa boa pintou...”

Castellani atirou no que viu e acertou em alvos previsíveis, como a onipotência do júri, a deficiência técnica dos equipamentos de som, falhas na organização do festival e a falta de boa vontade do reitor. Mas a mira alcançou também aquilo que poucos ali conseguiam enxergar: de um lado, criações medianas, prontas para uma competição de banca; de outro, o ativismo político na UFMA a serviço da cultura, e voos solares como a poesia de Salgado Maranhão e a música de um quase anônimo Zeca Baleiro (que na época assinava apenas como Zeca). “A indignação, a revolta e o protesto só podem existir agora porque algo aconteceu, algo existiu”, apontava Castellani, com seu improvável calibre cheio de razão.

1988, o ano sem Fump - Um festival fora do eixo

Em 1988 estava à frente do DCE o triunvirato Flávio Dino, Jefferson Portela e Douglas Melo. A gestão “Desacato” era o resultado de uma costura política entre grupos dissidentes dentro do movimento estudantil da UFMA. No acordo pré-eleitoral, juntaram-se numa mesma chapa as correntes Articulação (Flávio), Juventude Venceremos (Jefferson e Douglas), Semeando (Dimas Salustiano) e Caminhando (Wal Oliveira e Eri Castro), satélites do PT dentro da universidade. A colcha de retalhos no campo político não avançou no plano cultural. Depois de duas edições seguidas, o Festival Universitário de Música Popular fora interrompido naquele ano.

Com o vácuo do DCE e uma enxurrada de música represada entre a classe artística e os palcos minguantes de São Luís, a Secretaria de Cultura do Governo do Maranhão promoveu, de 14 a 17 de dezembro de 1988, o Festival de Música Popular Maranhense. Fora do eixo universitário, o festival chamou a atenção de compositores, músicos e intérpretes, alguns deles do interior do Maranhão (como Imperatriz, Caxias, Bacabal, Codó e Rosário), com quase 300 canções inscritas na fase pré-classificatória. A comissão organizadora formada por Sérgio Habibe, Wellington Reis, Tácito Borralho e Betto Pereira optou pelo Parque Folclórico da Vila Palmeira para a apresentação das 30 músicas selecionadas por um júri técnico criado especialmente para esse fim. As concorrentes ficaram assim divididas em três blocos de eliminatória:

Primeira eliminatória
“Cada um por si”, de Cleto Júnior e Ronald Pinheiro, com Válber (ex-vocalista do Nonato e Seu Conjunto);
“Musa da favela”, de Paulo Henrique Nascimento;
“Brincante”, de Inaldo Aragão;
“Noves fora”, de Nosly e Zeca Baleiro;
“Beija-flor”, de Orlando dos Santos;
“Axé”, de Roberto Rafa;
“Mistura brasileira”, de José Maria de Carvalho;
“Avessa manhã”, de Tutuca e Reinaldo Barros, com J. Nogueira;
“Dança dos pavios”, de Carlos Monteiro;
“Viagem a Moscou”, de Célia Leite, Antônio Carlos Alvim e Francisco Florêncio, com Célia Leite.

Segunda eliminatória
“Já não somos mais um par”, de César Nascimento, com Renata Nascimento;
“Ponha merengue”, de Omar Cutrim;
“Calça frouxa”, de Cláudio Valente;
“Fuzarca”, de Luís Henrique Bulcão, com Roberto Brandão, Rosa Reis, Fátima Passarinho, Rita Ribeiro, Inácio e Cláudio Pinheiro;
“Lua branca”, de Augusto Bastos e José Raimundo Gonçalves;
“Radiante”, de Jorge do Rosário;
“Canção para inglês ver No 2”, de Zeca Baleiro e Norberto Noleto;
“Ser vida”, de Roberto Ricci e Lígia Saavedra, com Lígia Saavedra;
“Olho d’Água”, de Raimundo Nonato de Souza;
“Ai lovi iú ou cantiga da roça”, de Marco Duailibe.

Terceira eliminatória
“Ave de arribação”, de Xavier Santos, com Neném Bragança;
“Mãe dos aflitos”, de Mário Lúcio e Eduardo dos Santos;
“Natividade”, de Lourival Tavares;
“Ribanceiras”, de Zeca Tocantins;
“Última oração”, de Benedito Júnior e Darlan Andrade;
“Abolição”, de Luís Carlos Dias;
“Sol e luar”, de Edine de Jesus Carvalho;
“Mulenge”, de Celso Reis e Nosly, com Celso Reis;
“Dia de São João”, de Ricardo Goulart;
“Rosa negra”, de Norberto Noleto e Hênio Moreira, com Fátima Passarinho.

No acompanhamento de todas as músicas concorrentes estava a banda Voo Livre, composta por William (bateria), Eliézer (teclados), Cleômenes (metal), Nonato (percussão), Oberdan (guitarra base), Edinho (guitarra solo) e Gordura (contrabaixo). A finalíssima, no dia 18 de dezembro, contou com jurados de peso, como o compositor, poeta e produtor musical Hermínio Belo de Carvalho; o compositor Nonato Buzar; os produtores musicais Carlos Sion (RCA) e Jamil Filho (Som Livre); o cantor e compositor Vitor Ramil; e o poeta e compositor Carlos Capinan, então secretário de Cultura da Bahia. Ao final do julgamento, assim ficou a classificação das músicas vencedoras do Festival Maranhense de Música Popular: 1o lugar – “Rosa negra”, de Norberto Noleto e Hênio Moreira; 2o lugar – “Mulenge”, de Celso Reis e Nosly; 3o lugar – “Noves fora”, de Nosly e Zeca Baleiro. “Fuzarca”, de Bulcão, recebeu o prêmio de melhor pesquisa. Celso Reis e Fátima Passarinho levaram o prêmio de melhores intérpretes, na avaliação do júri. Zeca Baleiro e Norberto Noleto receberam o prêmio de aclamação popular com “Canção para inglês ver No 2”.
“Rosa negra” (Norberto Noleto e Hênio Moreira)

Na mão direita uma roseira
Na outra um alçapão
Rato no queijo
Faca na mão
Nessa roseira cada espinho
Não é mais que uma canção
Olhos nos olhos
Boca na boca
Corpos no chão
Na ratoeira caiu aflito
Nas grades da solidão
Bala com bala
Nada com nada
A lei do alçapão
Nessa roseira tem cada bicho
Roendo meu coração
Olho por olho
Dente por dente
Põe tua máscara na mão

Seis meses depois, intérpretes das 12 músicas com melhor classificação no festival tomaram um ônibus com destino ao Rio de Janeiro para a gravação de um LP patrocinado pela Secretaria de Cultura do governo maranhense. O disco foi gravado durante cinco dias, em junho de 1989, no estúdio Master, com direção musical e arranjo de José Américo Bastos e produção de Sérgio Habibe e Wellington Reis. Se o festival propriamente dito não causou grandes polêmicas – embora se tenha criticado o excesso de músicas concorrentes, o amadorismo em algumas letras e melodias e, mais uma vez, a qualidade da aparelhagem de som -, a demora na conclusão do projeto do LP deu o que falar.

No dia 23 de novembro de 1989, quase um ano depois do festival, os artistas que gravaram suas músicas no LP foram pedir explicações à Secretaria de Cultura sobre o paradeiro do disco. “Cadê o disco?”, “por que ainda não saiu?”, foram algumas das questões levantadas por Roberto Brandão, Célia Leite, Fátima Passarinho, Celso Reis, Neném Bragança, Zeca Baleiro, Nosly e outros. Depois de seis dias de estrada, no trecho São Luís/Rio/São Luís, eles exigiam uma resposta do governo. E a resposta veio por meio do secretário Américo Azevedo Neto (que não estava no governo à época do festival): o disco foi gravado, mas não há recursos para mixagem, prensagem e impressão de capa.

Três flagrantes do dia do encontro dos artistas com representantes da Secretaria de Cultura do Maranhão; na primeira foto, Roberto Brandão, Célia Leite, Zeca Baleiro, Nosly e Fátima Passarinho

Cantores e compositores em reunião com Américo Azevedo Neto: cadê o disco?

Wellington Reis dá explicações sobre o paradeiro do LP

No dia seguinte à reunião, o jornalista Raimundo Garrone publicou reportagem no jornal “O Estado do Maranhão”, sob o título “Um disco perdido no espaço”, expondo o calvário dos artistas e o calote do festival. “O certo é que, passado tanto tempo, os artistas não estão mais a fim de ficar olhando para o céu esperando cair algum disco”, concluía Garrone. Outras reuniões, mais pressão no governo e, no final das contas, ninguém sabia dizer aonde estavam os recursos reservados para a produção do disco, previstos no projeto do festival. O LP, com projeto gráfico da capa assinado por Cláudio Vasconcelos, só chegou às mãos dos artistas em outubro de 1990, dois anos depois da realização do festival.

Capa do LP do festival de 1988: dois anos depois

1989, o IV Fump – Girassóis nos jardins do IML

Ao final do mandato de um ano do grupo “Desacato”, no DCE, em 1989 entrou em cena a gestão “Lutar é bom e não tem contraindicação”, a última da década, seguindo o mesmo formato de um acordão entre correntes políticas forjado na eleição anterior. Laurinda e Isael Gomes foram eleitos coordenadores do Diretório Central dos Estudantes numa chapa que tinha, entre outros, Pedro Duailibe, Jokcson Launé, Jarbas Lima, José Luís Diniz e Aracéa Carvalho como secretários de área.

Um dos principais desafios dos novos gestores foi a retomada dos projetos culturais dentro do campus, como importante ponto de contato entre a militância e a base do movimento estudantil. Assim, o DCE escalou uma comissão para cuidar especialmente da organização do festival de música. Sob a responsabilidade do secretário de cultura da entidade, Jarbas Lima, a comissão contava também com José Luís Diniz (secretário de imprensa), Aracéa Carvalho e Laurinda Pinto.

Das primeiras reuniões na sala do DCE, e após entendimentos preliminares com o Departamento de Assuntos Culturais da UFMA, nasceu o IV Fump, com duas eliminatórias programadas para os dias 19 e 20 de outubro de 1989. A novidade criada naquele ano foi o local escolhido como palco do festival. Nem o auditório “Jarbas Passarinho”, a área livre do Pimentão ou a praça central do campus. O DCE armou a tenda do IV Fump ao lado do prédio do Instituto Médico Legal (IML), logo na entrada do campus. A alternativa, afora algumas críticas quanto ao entra e sai de rabecões da vizinhança, deu à universidade a pintura de um parque apropriado para grandes manifestações culturais.

A banda e os mestres de cerimônia Lio Ribeiro e Silvana Cartágenes, no IV Fump

A área, porém, pareceu ampla demais para uma plateia mais enxuta em razão de greve no sistema de transporte público. Os estudantes também andavam dispersos. Era outubro, mas a universidade estava ainda em clima de final do primeiro semestre letivo devido à paralisação de professores e funcionários no início do ano. Em entrevista publicada no jornal “O Estado do Maranhão” do dia 22 de outubro, o secretário de imprensa do DCE, José Luís Diniz, queixava-se da intransigência da empresa de sonorização contratada para o festival, a Bacanga, e da falta de envolvimento do diretório nas atividades do evento. “Ficou nas costas de duas ou três pessoas”, reclamava Diniz, que carregaria o piano com Jarbas Lima, e contaria com apoio providencial de Bel Aquino. Certas diferenças políticas dentro do DCE apostavam no fiasco do festival.

No livreto com a apresentação das letras das canções selecionadas, o texto de Jarbas Lima chamava a atenção para os objetivos do IV Fump. O festival, segundo ele e toda a diretoria do DCE, deveria ser um instrumento cultural de crítica, expressão e conhecimento da comunidade universitária. Aquela arena musical serviria também, na definição de Jarbas, para a confraternização entre estudantes e a vivência de um momento lúdico em que estariam presentes “o amor e a criatividade imanentes da própria natureza humana”. Ao pé da letra, a plateia poderia, além de apreciar as músicas, deitar e rolar na grama pelos arredores do IML.

As 24 canções classificadas, entre as 53 composições inscritas, foram divididas em duas eliminatórias, cada uma delas com 12 músicas, conforme abaixo:

Primeira eliminatória
“Nirvana”, de Marco Cruz;
“A cachoeira”, de Alan Jorge e Jorge Lóton;
“Ciranda de girassóis”, de Carlos Wagner Lima Bastos;
“Filhos da Lagoa”, de Manoel Matos e Márlon Reis;
“Estática”, de Benedito Júnior e Darlan Andrade;
“Sorriso de criança”, de Marcos Lima;
“Mãe d’água”, de Chico Poeta;
“Desanuviar”, de Princesa Blues;
“Vai embora, gigolô”, de Valbelina Fonseca;
“Prole da promissão”, de Lourival Tavares, com José Carlos Daffé;
“Canção para não viver só”, de Clécio, Gordo e Zé Hametério;
“Como a lua e o sol”, de Jorge do Rosário.

Segunda eliminatória
“Boi coragem”, de Alan Jorge e Jorge Lóton;
“Uma canção”, de Ivandro Coelho e Henrique;
“Beijo de luz”, de Tutuca, Reinaldo Barros e César Nascimento;
“Guará”, de Sérgio Brenha;
“Filho de papai”, de Raelson e Luís Fernando Góis;
“Pomba Gira Puerê”, de William Moraes Corrêa, com o Grupo Madrearte;
“Mata virgem”, de Marco Cruz;
“Meu país”, de Jorge do Rosário e João Otávio;
“Sina de um poeta”, de José Carlos Silva;
“Amazônia”, de Adalberto Parente;
“Alma capoeira”, de Dias Filho;
“Naufrágio”, de William dos Anjos e Maninho, com Carlinhos Badauê.

Capa do livreto com a programação do IV Fump, distribuído pelo DCE

No dia do anúncio das músicas classificadas para as duas eliminatórias, uma adolescente, ainda com o uniforme da escola e acompanhada da mãe, dirigiu-se à sede do DCE para conferir se a música que interpretaria estava na seleção do júri. E não estava. Anna Torres foi às lágrimas ali mesmo, inconsolável com a eliminação precoce do festival.

Entre os jurados estavam Célia Leite, responsável pelo quesito melodia, e César Teixeira, com a incumbência de avaliar a letra das músicas. A novidade do IV Fump foi a inclusão do item “apresentação cênica” como critério de julgamento – em verdade, uma inovação em festivais de música até então. E, claro, houve reação de alguns artistas. Argumentavam eles que o Fump não era um festival de teatro. Não obstante o ruído entre cantores, músicos e compositores, o quesito foi mantido e, para julgá-lo, a comissão organizadora escalou o radialista Roberto Fernandes.

Na noite da primeira eliminatória, Zeca Baleiro, o vencedor do II Fump, levou ao palco um show descolado, sem regionalismos e provocador. Antes do show, os mestres de cerimônia Lio Ribeiro e Silvana Cartágenes avisaram que Zeca apresentaria a performance “A mulher que vira peixe”. O público, entre curioso e excitado, aguardou o número. Lá pelas tantas, Zeca apareceu no palco dando uma de “cego”, e Solange à frente “revirando” sardinhas numa frigideira que carregava em uma das mãos. De fato, era uma provocação do artista ao aguardado número “A mulher que vira peixe” do Gran Circo Mágico Alakazan, que naquele período estava em curta temporada no bairro da Cohab, em São Luís.

Celso Reis, vencedor do III Fump, fez o show especial na segunda noite de eliminatória. E na finalíssima, em 26 de outubro, quem se apresentou no palco do festival foi Joãozinho Ribeiro, acompanhado da banda-base do festival, formada por Maninho (guitarra), Pepê Júnior (guitarra e violão), Cláudio Ribeiro (baixo), Fleming (bateria) e Arlindo Carvalho (percussão). Após o show de Joãozinho, a comissão julgadora anunciou os vencedores do IV Fump: 1o lugar – “Prole da promissão”, de Lourival Tavares, com Zé Carlos Daffé; 2o lugar – “Guará”, de Sérgio Brenha; 3o lugar – “Meu país”, de Jorge do Rosário e João Otávio. Sérgio Brenha também ganhou o prêmio de melhor intérprete. No polêmico quesito apresentação cênica, quem venceu foi o Grupo Madrearte, com a música “Pomba Gira Puerê”. Valbelina Fonseca conquistou o troféu aclamação popular com a música “Vai embora, gigolô”. E, por fim, o troféu revelação foi entregue a um andrógino Carlinhos Badauê, personagem do meio acadêmico que seduziu a plateia com a interpretação de “Naufrágio”, de William dos Anjos e Maninho.

Prole da promissão (Lourival Tavares e José Carlos Daffé)
Quero que liberte o canto
Pra que toda a América
Possa navegar
Quero ver o tapete verde
Com o poder dos verdes
Pra não mais zarpar
Quando outro verde
Deixar de brilhar
É quando essa América
Então despertar
Vejo os castelos e as cercanias
De desnutrição
Vejo crescente os anseios
Da prole da promissão
Quando a certeza um dia chegar
Muitas ovelhas hão de pastar


Das lições do festival universitário e de sua passagem pelo DCE, Jarbas Lima aponta a acentuada incompreensão da esquerda em relação à cultura. No festival, ele diz que essa incompreensão ficou ainda mais acentuada. Mas reconhece o legado do IV Fump em vários aspectos da música produzida no Maranhão. Alguns artistas, segundo ele, abriram portas para a carreira profissional na música após passagem pelas arenas da universidade, como Zeca Baleiro e Rita Benneditto. “Pela primeira vez, o Fump teve a participação de uma representante do Sá Viana entre as músicas concorrentes”, conta. A representante era Valbelina Fonseca, que soltou a voz e ganhou o público com o bolero “Vai embora, gigolô”.

“Em 1989, às vésperas das primeiras eleições diretas pós-ditadura, os estudantes respiravam ares de expectativas democráticas. O IV FUMP significou uma retomada da criatividade e da irreverência própria dos antigos festivais. Estávamos deslumbrados com as liberdades recém-conquistadas. Vivemos esse clima no festival!”
Jarbas Lima

Outros festivais vieram depois, mas o IV Fump foi o último do circuito universitário nos anos 1980. Essas três edições da década fizeram história. Geraram polêmicas como todo festival que se preze e deram visibilidade a iniciantes na música produzida no Maranhão. Se mais o Fump não contribuiu para a formação de quadros do movimento estudantil ou para uma “transformação social” por meio da música, como assim desejava a esquerda do DCE, pelo menos deixou nuvens de fumaça no ar e rastros de corpos suados que se perderam alegremente no chão do Bacanga.

Eu comunico e não peço

O Pimentão tinha vida própria, meio Woodstock, meio praça de alimentação de shopping center. Na área livre do prédio, o diretório acadêmico de Comunicação armava o palco, uma vez por ano, para as atrações musicais e cênicas do Comunicarte. Reza a lenda que tudo começou em 1984 e se estendeu, no formato original, ao longo dos anos 1980. No período da tarde, as salas de aula eram ocupadas por oficinas de vídeo, fotografia, cinema, rádio, texto e poesia. Depois vinham os recitais poéticos de Francisco Júnior e de alguns Párias, espetáculos de dança contemporânea, números teatrais e mímica de Gílson César. Pelos arredores, remanescentes hippies trocavam miçangas por ervas milagrosas.

Sobre a grama do Pimentão os estudantes viviam em festa - ou encontravam pretextos pra quebrar a rotina das salas de aula, com jogos de cartas, teatro, protestos e até um anticoral. O pequeno Marivando Pereira, a quem os motoristas de boa fé deviam justa reverência, era o chefe mirim da segurança dos automóveis ali estacionados, e apreciava os shows que se estendiam pela noite. Dava pra juntar uns trocados. Quem não gostava mesmo do barulho era a professora Alaíde Pavão, temida por gerações de alunos que passavam pelo curso de Direito. O som de guitarras e baterias desviava a atenção da aula noturna. Para ela, o Comunicarte não passava de um “mafuá” de desocupados, como certa vez chegou a classificar o festival em documento encaminhado à reitoria da universidade. Enquanto Alaíde Pavão se queixava pro bispo e aplicava provas de Direito Penal, o personagem Badauê dançava da primeira à última música, requebrava no palco e ainda cantava trechos de “Esse cara”, incorporando o desbunde tropicalista de Caetano Veloso: “Ah, que esse cara tem me consumido...”.

Nos dias 23 e 24 de outubro de 1986, o 3o Comunicarte veio a lume sob a batuta do diretório acadêmico de Comunicação Social, gestão “Ribalta”, comandado por Pandora Dourado (presidente), Caíque Cardoso, Ferreira Júnior, Maristela Sena, Vânia Rego e Jaqueline Heluy, entre outros. Na programação, oficinas de criação coletiva, feira de livros, concurso de poesia, discussões sobre fotografia com Paulo Socha e bate-papo acerca da produção audiovisual do Maranhão com Ubaldo Moraes e Euclides Moreira Neto. E mais: recital da Akademia dos Párias e show com os artistas Cláudio Pinheiro, Tutuca, Célia Leite, Mano Borges, Gerude e Jorge Thadeu. Também como parte da agenda do 3o Comunicarte, o professor Nilson Amorim lançou o livro de poesias “Contradança”.

A irreverência do “correio elegante”, número protagonizado pela estudante Lisiane Costa que estimulava a troca de bilhetinhos amorosos entre os frequentadores da relva do Pimentão, marcou alguns momentos do Comunicarte. Entre 1986 e 1989 foram quatro edições do evento. Um pé na arte tradicional, nas raízes da cultura, no componente da chamada música popular maranhense, ainda incipiente, com poucos discos na praça. Outro pé em expressões menos convencionais, nas experimentações daquele momento, como o espetáculo de teatro e música “Miragem”, com Geraldo Iensen e Charles Melo. Um misto de laboratório acadêmico, feira livre e farra para estudantes interessados em quebrar as armaduras do campus.

Panorâmica do Comunicarte: preparativos para uma tarde/noite de shows no palco-Kombi improvisado na área livre do Pimentão

O Comunicarte era um Fump reinventado, mais intimista, com música entre amigos, sem concorrentes, sem o tradicional corpo de jurados. Foi mais celebração, menos cachê, menos prêmio. Muitos artistas passaram pelo palco por mera camaradagem, pelo trabalho novo que precisava de plateia, pela sinergia com o público universitário. A maioria deles, jovens iniciantes na música como Zeca Baleiro, Mano Borges e Celso Reis – ou as bandas de rock pesado Ácido, Iceberg e Nirvana -, ainda vivia o sonho distante de uma música gravada em LP.

Oficina de vídeo do Comunicarte: Beto Matuk dirige documentário com reportagem de Valquíria Santana

Fump e Comunicarte são frutos de um mesmo movimento estudantil esfacelado, mas vivo, que com certo barulho perdurou pelo campus do Bacanga durante os anos 1980. Na contramão das prioridades da esquerda universitária, os dois eventos serviram de usina e brisa para artistas sem amarrações, ali empoderados, e de válvula de escape para estudantes indiferentes à política dos diretórios acadêmicos. Se havia fumaça, havia fogo. Era a política da militância, com todas as incongruências internas e vicissitudes, quem encontrava o caminho da pólvora e acendia o pavio.


Notas de rodapé

O primeiro festival de música no Maranhão ocorreu em 1971, promovido pela Prefeitura de São Luís na gestão de Haroldo Tavares. Com o nome de I Festival da Música Popular Brasileira no Maranhão, e dirigido por Américo Azevedo Neto, então secretário municipal de Turismo, o concurso contou com três eliminatórias no Ginásio Costa Rodrigues e os finalistas tiveram suas músicas incluídas em um LP. No disco, gravado no Rio de Janeiro com direção musical do maestro Paulo Moura, constam músicas como “Boqueirão”, de Giordano Mochel, “Louvação de São Luís”, de Bandeira Tribuzi, “Bonzo”, de Ubiratan Souza e Souza Neto, “Ladeira”, de Oberdan Oliveira, “Sem compromisso”, de Ronaldo Mota, e “Fuga e anti-fuga”, de Sérgio Habibe.

Capa do LP do festival de 1971

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Algumas escolas particulares de São Luís, como Dom Bosco, Marista e Santa Teresa, realizaram festivais de música nos anos 1980. Em 1983, a rádio Mirante FM e a TV Ribamar promoveram o I Festival de Verão da Música Maranhense, com eliminatórias no Ginásio Costa Rodrigues e a grande final no Estádio Nhozinho Santos. Dele participaram José Pereira Godão, Cláudio Pinheiro, Gabriel Melônio, Raimundo Makarra e Ubiratan Teixeira, entre outros.

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Em 1985 foi a vez do Festival Viva, organizado pela Secretaria de Desportos e Lazer do Governo do Maranhão. “Oração latina”, música de César Teixeira interpretada por Cláudio Pinheiro e Gabriel Melônio, foi a vencedora do festival, que também contou com a participação de Fauzi Beydoun e Rosa Reis (“Neguinha”), César Nascimento (“Forrockiando”), Jorge Thadeu e Gerude (“O Paraíba”), Luís Bulcão (“Estrela do mar”) e Rogério do Maranhão (intérprete de “Alcântara”, de Nato Araújo). Zeca Baleiro participou das eliminatórias do Viva com o samba de breque “Hipocondríaco”, mas foi desclassificado.

Capa do LP do Festival Viva, de 1985

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Em outubro de 1986, Zeca Tocantins venceu o I Festival Aberto do Balneário Estância do Recreio (Faber), em Imperatriz (MA), com a música “Depois do tiroteio”. Entre os finalistas estavam ainda Carlinhos Veloz (com “Nordeste inocente” e “Juízo final”), Erasmo Dibell (com “Bicho papão” e “Aletia”) e Eduardo Moloni (com “Um novo dia”). Músicas como “Imperador Tocantins”, de Veloz, e “Filhos da precisão”, de Dibell, foram reveladas em edições posteriores do Faber. Em novembro de 1987, Neném Bragança ficou em segundo lugar e conquistou o troféu Arara de Ouro no II Festival da Canção de Carajás (Fescar).

Um dos momentos do Faber, em Imperatriz

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O goiano/tocantinense José Norberto Noleto, um dos nomes mais assíduos dos festivais de música do campus do Bacanga nos anos 1980, entrou na Universidade Federal do Maranhão em 1979 para o curso de Engenharia Elétrica. Em 2007, ano em que foi jubilado pela UFMA, lançou o CD independente “O mágico”, com 12 faixas e as participações especiais de Zeca Baleiro e Rita Benneditto. Entre as músicas do disco, destaque para "Perguntas e respostas", "Cavaleiro do Rei" (canção que deu a Rita o prêmio de melhor intérprete no III Fump) e "A Lenda do colibri".

Capa do CD lançado por Norberto Noleto

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Enquanto estudantes pediam a cabeça de José Maria Cabral Marques em campanha aberta por eleições diretas para reitor na UFMA, em 1987 ele fora eleito, em San Juan (Porto Rico) vice-presidente do Conselho Executivo da Universidade Iberoamericana de Pós-Graduação; em Tegucigalpa (Honduras), assumiu a vice-presidência, para o Brasil, do Conselho Universitário para o Desenvolvimento Econômico e Social; e em Mérida (México), fora reeleito para o Conselho Consultivo da Organização Universitária Interamericana, com sede em Quebec, no Canadá. Todos esses mandatos com duração de quatro anos.


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Fotos e contribuições de datas e dados: arquivos dos jornais “O Estado do Maranhão” e “O Imparcial”, Jarbas Lima, José Luís Diniz, Wal Oliveira, Bel Aquino, Moisés Matias, Celso Reis, Magno Moraes, Norma Passos e Celijon Ramos.

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