Aline Louise
Texto lúcido e muito pertinente do Joca Reiners Terron. Recomendo!
AS VANTAGENS DE UMA DOR
Comemorei esta passagem de ano portando uma pulsante dor de dente,
daquelas que nos levam à loucura. Enquanto os fogos de artifício
coloriam o céu sobre a baía de Santos com cores dignas de um Van Gogh,
meu sistema nervoso explodia de outra forma. O maxilar latejava e
girassóis luminosos transformavam a meia-noite do réveillon em pleno
meio-dia.
É incrível como uma
mera dor de dente pode parecer algo minúsculo e fora de hora, diante
daquelas promessas mirabolantes e pontuais que costumamos fazer no
início do ano novo. Comigo não foi diferente: momentos antes de pisar a
areia da praia para ver os fogos e estourar a champanhe, eu já prometia a
mim mesmo mundos e fundos: carro novo, vida nova — um homem novo,
enfim. E para acompanhar o homem novo, quem sabe até mesmo uma nova
mulher? Diante dos olhos daquele meu outro eu otimista e canalha, o
fulano de antes da dor de dente, refulgiam ainda os trios elétricos do
carnaval por vir, cheios de promessas de felicidade e axé.
Quanta ilusão. O bem que uma dorzinha mequetrefe e inesperada pode fazer
a um homem! Promessas de ano novo não costumam se pautar por
necessidades objetivas, pela realidade. Elas são, como dizer, uma
espécie de fuga, um tipo de postergação. Quem promete também joga as
mudanças adiante, para o futuro, deixando de realizar o absolutamente
necessário agorinha mesmo, no momento de sua real necessidade. Para que
cumprir minhas obrigações hoje — como o tratamento dentário, por exemplo
—, se tenho todo o ano que chega para (não) realizá-las?
Uma
dorzinha de dente pode igualmente servir para isso, para equalizar todas
as expectativas. Para, de alguma forma, harmonizar o passado com o
futuro. De que adiantaria, afinal, um homem novo com dentes velhos e mal
cuidados? Um homem novo em espírito e em boas intenções (ou más,
dependendo do ponto de vista), mas em débito com suas promessas
passadas? Qual mulher nova, afinal, compraria a ideia de um novo homem
que não cumpriu a revisão geral de seus quarenta mil quilômetros?
“Nada provém do nada”, disse Epicuro, o filósofo grego. E diria mais:
nossas promessas devem ser como a vida deve ser, equilibrada e
imperturbável feito uma tarde de sol. O primeiro passo é prometer apenas
o possível, e não esquecer de cumprir a promessa. Cuidar dos dentes.
Cuidar do coração e de quem estiver ao lado dele. Cuidar do amor antigo,
por que não? Uma promessa só existirá se for o vento batendo nas folhas
das árvores. Já a dor de dente existe, surgindo sempre de algo que não
se cumpriu. Para que o carnaval se cumpra, entretanto, bastam apenas as
promessas de felicidade.
Texto lúcido e muito pertinente do Joca Reiners Terron. Recomendo!
AS VANTAGENS DE UMA DOR
Comemorei esta passagem de ano portando uma pulsante dor de dente, daquelas que nos levam à loucura. Enquanto os fogos de artifício coloriam o céu sobre a baía de Santos com cores dignas de um Van Gogh, meu sistema nervoso explodia de outra forma. O maxilar latejava e girassóis luminosos transformavam a meia-noite do réveillon em pleno meio-dia.
É incrível como uma mera dor de dente pode parecer algo minúsculo e fora de hora, diante daquelas promessas mirabolantes e pontuais que costumamos fazer no início do ano novo. Comigo não foi diferente: momentos antes de pisar a areia da praia para ver os fogos e estourar a champanhe, eu já prometia a mim mesmo mundos e fundos: carro novo, vida nova — um homem novo, enfim. E para acompanhar o homem novo, quem sabe até mesmo uma nova mulher? Diante dos olhos daquele meu outro eu otimista e canalha, o fulano de antes da dor de dente, refulgiam ainda os trios elétricos do carnaval por vir, cheios de promessas de felicidade e axé.
Quanta ilusão. O bem que uma dorzinha mequetrefe e inesperada pode fazer a um homem! Promessas de ano novo não costumam se pautar por necessidades objetivas, pela realidade. Elas são, como dizer, uma espécie de fuga, um tipo de postergação. Quem promete também joga as mudanças adiante, para o futuro, deixando de realizar o absolutamente necessário agorinha mesmo, no momento de sua real necessidade. Para que cumprir minhas obrigações hoje — como o tratamento dentário, por exemplo —, se tenho todo o ano que chega para (não) realizá-las?
Uma dorzinha de dente pode igualmente servir para isso, para equalizar todas as expectativas. Para, de alguma forma, harmonizar o passado com o futuro. De que adiantaria, afinal, um homem novo com dentes velhos e mal cuidados? Um homem novo em espírito e em boas intenções (ou más, dependendo do ponto de vista), mas em débito com suas promessas passadas? Qual mulher nova, afinal, compraria a ideia de um novo homem que não cumpriu a revisão geral de seus quarenta mil quilômetros?
“Nada provém do nada”, disse Epicuro, o filósofo grego. E diria mais: nossas promessas devem ser como a vida deve ser, equilibrada e imperturbável feito uma tarde de sol. O primeiro passo é prometer apenas o possível, e não esquecer de cumprir a promessa. Cuidar dos dentes. Cuidar do coração e de quem estiver ao lado dele. Cuidar do amor antigo, por que não? Uma promessa só existirá se for o vento batendo nas folhas das árvores. Já a dor de dente existe, surgindo sempre de algo que não se cumpriu. Para que o carnaval se cumpra, entretanto, bastam apenas as promessas de felicidade.
AS VANTAGENS DE UMA DOR
Comemorei esta passagem de ano portando uma pulsante dor de dente, daquelas que nos levam à loucura. Enquanto os fogos de artifício coloriam o céu sobre a baía de Santos com cores dignas de um Van Gogh, meu sistema nervoso explodia de outra forma. O maxilar latejava e girassóis luminosos transformavam a meia-noite do réveillon em pleno meio-dia.
É incrível como uma mera dor de dente pode parecer algo minúsculo e fora de hora, diante daquelas promessas mirabolantes e pontuais que costumamos fazer no início do ano novo. Comigo não foi diferente: momentos antes de pisar a areia da praia para ver os fogos e estourar a champanhe, eu já prometia a mim mesmo mundos e fundos: carro novo, vida nova — um homem novo, enfim. E para acompanhar o homem novo, quem sabe até mesmo uma nova mulher? Diante dos olhos daquele meu outro eu otimista e canalha, o fulano de antes da dor de dente, refulgiam ainda os trios elétricos do carnaval por vir, cheios de promessas de felicidade e axé.
Quanta ilusão. O bem que uma dorzinha mequetrefe e inesperada pode fazer a um homem! Promessas de ano novo não costumam se pautar por necessidades objetivas, pela realidade. Elas são, como dizer, uma espécie de fuga, um tipo de postergação. Quem promete também joga as mudanças adiante, para o futuro, deixando de realizar o absolutamente necessário agorinha mesmo, no momento de sua real necessidade. Para que cumprir minhas obrigações hoje — como o tratamento dentário, por exemplo —, se tenho todo o ano que chega para (não) realizá-las?
Uma dorzinha de dente pode igualmente servir para isso, para equalizar todas as expectativas. Para, de alguma forma, harmonizar o passado com o futuro. De que adiantaria, afinal, um homem novo com dentes velhos e mal cuidados? Um homem novo em espírito e em boas intenções (ou más, dependendo do ponto de vista), mas em débito com suas promessas passadas? Qual mulher nova, afinal, compraria a ideia de um novo homem que não cumpriu a revisão geral de seus quarenta mil quilômetros?
“Nada provém do nada”, disse Epicuro, o filósofo grego. E diria mais: nossas promessas devem ser como a vida deve ser, equilibrada e imperturbável feito uma tarde de sol. O primeiro passo é prometer apenas o possível, e não esquecer de cumprir a promessa. Cuidar dos dentes. Cuidar do coração e de quem estiver ao lado dele. Cuidar do amor antigo, por que não? Uma promessa só existirá se for o vento batendo nas folhas das árvores. Já a dor de dente existe, surgindo sempre de algo que não se cumpriu. Para que o carnaval se cumpra, entretanto, bastam apenas as promessas de felicidade.
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