terça-feira, 4 de junho de 2013

DAS INTENÇÕES EM RODA VIVA DE CHICO BUARQUE


Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu...

A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração... (Refrão)
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá...
A roda da saia a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou...
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá...
O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou...
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...

            Pesquisando em casa material sobre leitura e produção textual, deparei-me com o livro Redação -palavra e arte (Atual Editora, 1999), de  Marina Ferreira e Tania Pellegrini. O manual,  dirigido para o Ensino Médio, é bem organizado, e traz uma boa seleção de textos, entre os quais, lá pela página 62, encontramos a letra da canção Roda Viva, de Chico Buarque de Holanda, e o que me fez dar uma pausa e refletir: os comentários sobre o texto, na realidade dois parágrafos. Vá lá que o livro é dirigido para estudantes do Ensino Médio, mas a letra do Francisco de Holanda renderia muito mais, principalmente por estar num capítulo alusivo ao estudo das intenções subjacentes a um texto. A quantidade do dito é o de menos, vamos à qualidade.

            No primeiro comentário, as autoras afirmam que Roda viva é “uma bela imagem para a passagem do tempo” e asseveram que “O autor faz, assim, uma bela reflexão sobre o ritmo da vida, a fugacidade do tempo”. E para os versos 01 e 02 da segunda estrofe ( A gente vai contra a corrente/ Até não poder resistir), a compreensão de Ferreira e Pellegrini é que se trata de resistir ao ritmo do tempo. Ora, não parece ter sido essa a leitura dos agentes da ditadura em 1968, quando invadiram o Teatro do Galpão em São Paulo, espancaram os atores e quebraram os cenários da peça homônima da música. Apesar de a música ser tema de uma peça que falava sobre a situação de um homem ( no caso em tela um artista) sujeitado pelo poder da mídia e engolido pelas engrenagens sociais, alguns versos de certo soariam especialmente desconfortáveis para os que apoiavam o cerceamento das liberdades nos “anos de chumbo”:
·Externar um sentimento de tristeza, desengano, não era uma boa pedida, por ser a confirmação de que alguma coisa andava errada na conjuntura social de então: Tem dias que a gente se sente/ como quem partiu ou  morreu;  A roda de samba acabou; Foi tudo ilusão passageira/ Que a brisa primeira levou.
·Sugerir um contexto de impedimentos no Brasil também não faria a alegria da direita: Até não poder resistir; Não posso fazer serenata. Nesse ponto são exemplares os versos que antecedem o refrão (Roda mundo, roda gigante...), explicitamente estruturados pela adversidade do reiterado segmento Mas eis que chega a roda viva/ E carrega...: ter voz ativa e mandar no próprio destino; cultivar o belo, a arte (roseira); tomar a iniciativa.  A semântica do verbo carregar  aponta para a possibilidade do uso da força para romper com desejos “perigosos” e assanha a memória dos métodos empregados pelos militares à época.
·Atiçar um sentimento de reação e de esperança em quem assistisse à peça ou ouvisse a canção com certeza seria motivo suficiente para que os adeptos do regime ditatorial “descessem o sarrafo”: A gente vai contra a corrente (…) Na volta do barco é que sente/ O quanto deixou de cumprir, ou seja, então seria possível contrapor-se ao cenário estabelecido, pois cada indivíduo (A gente) poderia fazer muito mais (O quanto) pela sociedade.
            É provável que o penúltimo verso do refrão (O tempo rodou num instante) e o sexto da última estrofe (Faz força pro tempo parar ) tenham influenciado na opção de leitura das autoras do livro Redação -palavra e arte, uma leitura, aliás, muito bonita, mas que não considera os aspectos sociais envolvidos com a passagem do tempo. Do modo como Ferreira e Pellegrini colocam, o tempo seria, na letra da canção, uma entidade absoluta e determinante do que acontecesse ao homem, mas, segundo se viu acima, contextualizando a letra na década de 1960, de um modo geral, e no enredo da peça, de modo particular, têm-se determinantes mais concretos para as agruras vividas pela gente de que fala o texto: a ditadura militar, num caso; e o poder destruidor dos meios de formação de opinião, no outro.
            A falta de contextualização é, a meu ver, o maior defeito da seção destinada no livro para a leitura e interpretação de Roda viva. As autoras perderam a oportunidade de apresentar um momento importante de nossa história e estabelecer o necessário link entre texto e contexto. Por essa trilha, no segundo parágrafo de seus comentários, as professoras indicam que  a letra “prioriza uma mensagem específica, isto é, a reflexão a respeito da força do tempo que passa” e mais adiante dão o entendimento de que o trabalho do autor possuiria “clara intenção estética”. Considero eu que o estético é condição mesma do poema, não sua intenção. O intento está para além do estético mas deste faz uso, para lograr seus fins. Quais seriam estes? O ataque cifrado ao regime ditatorial? A descrição de como a vida é destruída pelo poder midiático? A reflexão sobre a força do tempo? São leituras, e esse aspecto de pluralidade de visões deveria ser garantido, principalmente num manual destinado a um público que, via de regra, considera verdade de difícil contestação o que vai nos livros didáticos preparados por especialistas. É o discurso de autoridade, que ganha mais força com o uso do artigo definido “a reflexão”, além da redução de uma mensagem “específica”, e a ausência da locução poder+ser, que indicaria as possibilidades abertas por leitura de texto tão rico como o Roda viva.
            Pesquisar intenções tem esse risco: o cara vai pesquisar o que pretendia o autor com dado texto, encontra entrevistas de Chico Buarque sobre a obra e pode perder alguma porcentagem da beleza do  poema, porque se fecham algumas janelas de leitura. Quem quiser ouvir da boca do autor  há o filme Uma noite em 67, e vídeos no Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=SciYbACJa0o).
            Fico com minha professora Maria Rita Santos, quem, na faculdade de Letras da Federal do Maranhão, dizia “Se o autor publicou a obra, esta não mais lhe pertence unicamente; é do público”. É o público que faz a festa da leitura e, para tanto, precisa de aberturas, não de cercas. Esse tempo já passou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário