Mas para voar - e com aquele nariz... - há que ser coruja! A boca abreviada, um traço curto, quase desenho de menino; os olhos cavados no rosto, o rosto curto. E há pêlos na orelha, meu Deus! Mais: aposto, quando eu passar para o quarto, ela dará uma volta completa na cabeça, 360°, igual à Regan de O Exorcista. Igual a uma coruja. Mas sem dramas e terrores, que ela é do bem. Apenas calada. Cansou da existência... e da voz.
135 anos, 134 de verbo. Primeiro, balbuciando, bodejando, chamando o pai e a mãe, fazendo-lhes pirraça; logo as perguntas tremidas para a professora; e então as confissões de amor, as declarações, as confidências, as chatices de adolescente.
Disse o sim para o padre - já o havia dito para o vovô, por trás de uma Imburana-de-cambão,a saia subida, numa dessas tardes abrasadas, no sertão do Ceará. Deu bênção aos filhos- 16 crianças, ralhou, admoestou, praguejou, amaldiçoou quem quis sair de sob sua saia, de sob suas asas; pediu perdão, corada; chorou, fez intriga com as noras, zangou-se com os netos; brincou com os bisnetos, contou-lhes histórias, mentiras escabrosas.
Despediu-se do vovô, depois chorou a morte de mais nove de suas crias; rezou, conversou com a visagem da mãe (morta há mais de quarenta anos),caducou, caducou... Respondeu boa-noite a Cid
Moreira, chamou Zé Sarney de honorável bandido, desejou final feliz pra Nívea Maria. Como falou a tal coruja. Como piapiou! Agora só pensa, devaneia a velha. Mas em seus voos abissais, em seus mergulhos estratosféricos, ela recobra o tempo, sobressai-se a nós, meros mortais. Uma coruja com gestos aquilinos, uma deusa em carcaça na sala: uma velha (c)alada.
Marcelino Rodrigues Cutrim Netto (Blog Pan y vino)
____________________________________
"honorável bandido" é referência clara -e laudatória- ao excelente livro "Honoráveis bandidos", do jornalista Palmério Dória
Nenhum comentário:
Postar um comentário