Primeiro ano da Nova República. O País vivia o transe total do Plano
Cruzado e avistava com certa desconfiança o futuro da economia. O
governo do então presidente José Sarney era de incertezas, apesar da
lua de mel do congelamento de preços. Líquida e certa mesmo só a fé na
conquista do tetra campeonato de futebol no México. Sarney, bombardeado
noite e dia pelo PMDB de Ulysses Guimarães e acossado pelas
instituições da República, experimentava os primeiros dissabores do
cargo.
O Maranhão tinha como governador o pecuarista Luiz Rocha, ligado à UDR
e, por isso mesmo, mal visto pela ala progressista da Igreja Católica.
O estado atravessava um período turbulento de conflitos agrários (1),
situação agravada em 10 de maio de 1986 com o assassinato do padre
Josimo Tavares, coordenador da Comissão Pastoral da Terra na região sul
do estado, que compreendia a inflamável área do Bico do Papagaio.
Cenário econômico, eleições estudantis, opressão social, a força do
clero e a questão agrária, temas que incendiavam os debates em sala de
aula, nos corredores e nas assembleias de curso das universidades, eram
também a nossa revolução pelo discurso. Mas um discurso político
fechado, meio tosco, que a rigor não descortinava a linha do horizonte
meramente acadêmico. Olhando de dentro da universidade o mundo lá fora
parecia embaçado, defeituoso e atrasado. Estávamos à frente, o nosso
lugar era um pavimento acima da realidade, bem longe das discussões
aparentemente pequeno-burguesas da juventude, como drogas e liberdade,
comportamento e poder, produção cultural e sexualidade.
Maio, 1986. Éramos apenas os meninos recém desembarcados na
Universidade Federal do Maranhão. Cada um com um sonho nos olhos
apressados, feito câmeras nervosas enquadrando a nossa nouvelle vague
fora de época. Os primeiros passos do primeiro semestre. Já encontramos
na UFMA um campus minado pelas disputas de três grupos políticos: os
petistas (hegemônico nos diretórios acadêmicos e DCE), os comunistas
(ligados ao PCdoB) e os prestistas (ligados ao PCB de Luiz Carlos
Prestes e da médica e militante comunista Maria Aragão).
O Brasil conviveu com o fantasma da censura até 1984 (2), quando chegou
ao fim a ditadura militar e o reinado da inflexível Solange Hernandes,
diretora da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão
ligado ao Departamento de Polícia Federal. No dia 26 de março de 1985 o
então ministro da Justiça, Fernando Lyra, divulgou mensagem afirmando
que o governo da Nova República passava a abdicar do poder secular de
censor da produção artística. “Fica hoje abolida toda e qualquer
censura política de obras de arte e demais produções intelectuais. O
Estado não vai exercer qualquer freio à produção de qualquer tipo de
manifestação política em obras de arte”, disse o ministro.
De fato, por pressão de movimentos organizados pela classe artística,
muitas produções culturais vieram a lume depois de anos na escuridão da
censura, como o livro “Aracelli, meu amor”, do maranhense José
Louzeiro; e os filmes “Pra frente, Brasil”, de Roberto Farias, e “Eles
não usam black-tie”, de Leon Hirszman.
Havia, porém, mais pedras no caminho. Pressionado pela Igreja Católica,
e contrariando o que havia dito o ministro Lyra em nome da abertura
política, o presidente Sarney decidira, em fevereiro de 1986, proibir a
exibição pública no Brasil do filme “Je vous salue, Marie” (França,
1985), do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard. A mesma estética
provocadora, às vezes anárquica, usada por Godard em outros filmes que
o consagraram como um dos maiores cineastas da segunda metade do século
20 estava presente no longa-metragem que expunha uma Virgem Maria de
carne e osso.
Maria pela lente de Jean-Luc Godard
Com exibição também proibida em outros países católicos do chamado
Terceiro Mundo, principalmente pelas declarações do papa João Paulo II,
“Je vous salue, Marie” provocou polêmica por estimular o debate sobre a
difícil convivência entre o corpo e a alma. No filme, a moderna Maria
(Myriem Roussel) é frentista num posto de gasolina, joga basquete, fala
palavrões, tem namorado e aparece nua em algumas cenas. José (Thierry
Rode) é taxista, tem um caso com outra mulher e acusa Maria de traição
ao saber de sua gravidez. O anjo Gabriel (Philippe Lacoste) também é um
cidadão comum que tenta convencer José a aceitar a gravidez imaculada
de Maria. Como num lance de quadrinhos, o longa apresenta a história
paralela de um professor de ciências que tem um caso com uma de suas
alunas (a bela Juliette Binoche) e dá aulas sobre a origem da vida.
Com esses ingredientes, o iconoclasta Godard de “Je vous salue, Marie”
fez tremer os pilares da fé cristã e fomentou a interpretação
maniqueísta de sua obra a ponto de provocar uma rusga de efeito
prolongado entre Roberto Carlos e Caetano Veloso. No livro “Roberto
Carlos em detalhes” (Editora Planeta, 2006), retirado das bancas dez
dias depois de lançado por ordem judicial a pedido do “Rei”, o autor
Paulo Cesar de Araújo conta que a proibição do filme no Brasil
desencadeou uma reação de artistas, universitários, professores e
profissionais liberais que não aceitavam a volta da censura. Muitos
escreveram cartas ao Palácio do Planalto criticando a proibição. Na
contramão, Roberto Carlos enviou telegrama ao presidente Sarney
solidarizando-se com a igreja e apoiando publicamente a opção pela
censura ao filme.
"Não vi e não gostaria de ver. Sou contra esse tipo de filme que mexe
com divindades. Acho que deve haver respeito para com a Virgem Maria.
Pelo que li sobre o filme estou de acordo com o presidente Sarney sobre
sua proibição", dissera Roberto Carlos. Caetano, que assistira ao filme
em Paris meses antes, reagiu em artigo no jornal “Folha de S. Paulo”:
"O telegrama de Roberto Carlos a Sarney envergonha a nossa classe”. E
foi mais adiante: "Vamos manter uma atitude de repúdio ao veto e de
desprezo aos hipócritas e pusilânimes que o apoiam".
Roberto considerou deselegantes as declarações do cantor e compositor
baiano. "Apoiei o veto por absoluta consciência de que o filme de
Godard deturpa e desrespeita a história sagrada. Continuo contra a sua
exibição porque sou um homem religioso e os valores cristãos são muito
importantes para mim”, retrucara.
No campus da Universidade Federal do Maranhão, os estudantes Fernando
Mitoso e Magno Moraes, à frente do Diretório Acadêmico do curso de
Filosofia, iniciavam no dia 26 de maio, no auditório do Colégio
Maristas, o 1o Seminário Maranhense Sobre Sexualidade. Era o ensaio
inicial para o grande ato daquela semana, que teria como palco o
Auditório Jarbas Passarinho, da UFMA. Juventude à flor da pele. As
provocações de Godard apenas tiravam um fino em temas como liberação
sexual, estética e filosofia do corpo, sexo e poder, a castração do
prazer, entre outros assuntos abordados durante três dias pelo
professor Márcio Marighela, da PUC de Campinas (SP).
Vista interna do Auditório Jarbas Passarinho, dois dias antes da exibição do filme "Je vous salue, Marie"
No dia 27 de maio, no anfiteatro do Centro de Ciências Sociais da UFMA,
começava o 3o Encontro de Comunicação Social, que também duraria três
dias. Em pauta, temas genéricos como os problemas do curso e a relação
com o sistema de ensino no Brasil, perspectivas do mercado de trabalho
e a obrigatoriedade do diploma de jornalista nas empresas de
comunicação. Nos debates, a censura ao filme “Je vous salue, Marie” era
tratada como uma questão política que inspirava atenção e cuidado
porque feria a liberdade de expressão. Mas o tema ficou de fora da
palestra de Waldemar Moreira, subchefe de reportagem do “Fantástico”,
da TV Globo, que discorreu sobre a “revolução” que o programa provocava
na televisão brasileira.
Waldemar Moreira, da TV Globo, em palestra para estudantes de Comunicação, no anfiteatro do Centro de Ciências Sociais
Com a obra de Godard proibida nos cinemas do País (3), a diretoria da
União Nacional dos Estudantes (UNE), aproveitando o clamor dos
movimentos sociais e culturais, decidiu distribuir cópias VHS do filme
em universidades públicas brasileiras numa estratégia de campanha
eleitoral. No 37o Congresso da UNE, realizado no mês de abril em
Goiânia, os estudantes decidiram que depois de quase uma década a
entidade realizaria, nos dias 4 e 5 de junho, eleições diretas para a
sua nova diretoria. O então presidente Renildo Calheiros (alagoano
filiado ao PCdoB, irmão do atual presidente do Senado, Renan
Calheiros), eleito em 1984 e defensor da escolha indireta, fora vencido
no congresso pelo voto das oposições.
“Je vous salue, Marie” transformou-se em programa de campanha da chapa
UNE Livre, apoiada por Calheiros e que tinha Gisela Mendonça como
candidata a presidente. De igual pra igual disputava a eleição com a
UNE Livre (do PCdoB) a chapa Pra Sair Dessa Maré (ligada a setores do
PT), a única com representante maranhense - Aníbal Lins, estudante de
Economia que concorria ao cargo de vice-presidente para a região Norte.
Corriam por fora as chapas Arrebentar a Boca do Balão (apoiada por
setores do PSB, PMDB, PCB, PDT e MR-8), Tem Que Dar Certo (ligada ao
PTB e ao PFL) e Borduna Democrática (estudantes de linha anarquista).
Primeiro dia de votação nas eleições para diretoria da UNE, no campus da UFMA
A chapa de Gisela Mendonça montou uma operação clandestina para fazer o
filme de Godard chegar ao maior número possível de estudantes, em
exibições coordenadas por lideranças políticas aliadas. Como não havia
cópias suficientes para todos os estados, os estudantes do Maranhão
recorreram aos universitários do Piauí. Na UFMA, o aliado da UNE Livre
era o grupo do PCdoB (cujo núcleo universitário depois incorporaria o
nome de Viração) que havia disputado pela chapa Pra Mudar o DCE, no
início de 1986, a eleição para o Diretório Central dos Estudantes.
Entre os integrantes do grupo estavam José Ribamar Soares Moreno, o
“Zeca” (estudante de Medicina candidato a presidente), Nonato Martins
(Economia), Gilberto Carlos Gonçalves Sousa (Farmácia), Alfredo,
Alberto, Margareth, Rosângela, Ivete e Cristina. Os comunistas
atrelados ao PCdoB perderam no voto para a chapa Alerta! Jacaré Parado
Vira Bolsa, ligada ao PT, que tinha Arleth Borges como presidente,
Aníbal Lins como secretário-geral, Márcio Jerry como secretário do
Centro de Ciências Sociais e Celso Reis como secretario de Cultura,
entre outros (veja imagem do panfleto abaixo cedido por Celso Reis).
Eleição da UNE ficou polarizada entre as chapas UNE Livre e Pra Sair Dessa Maré
Era maio oito meia, um maio meia oito reinventado, às avessas, menos
plural, sem as barricadas do desejo. Os representantes do PCdoB na UNE,
assim como os seus aliados maranhenses, não estavam interessados na
linguagem cinematográfica de Godard, na transgressão de uma Maria em
conflito com o seu sexo. O que estava em jogo era a eleição nacional da
entidade, e o filme poderia ser a salvação. Os votos urgiam.
Alegando irregularidades na distribuição de cédulas de votação, as
chapas Pra Sair Dessa Maré e Arrebentar a Boca do Balão afastaram-se do
processo no segundo dia de eleição e pediram a anulação do pleito. O
processo foi suspenso em alguns estados, inclusive no Maranhão, mas,
apesar da reduzida participação estudantil, a eleição foi concluída
debaixo de muitos protestos com a vitória da UNE Livre.
O estudante Edmundo dos Reis Luz, do curso de Letras da UFMA, fora
escalado oficialmente pela turma do PCdoB/Viração para ir a Teresina
(PI) buscar uma cópia da fita de “Je vous salue, Marie”. Mas era só uma
pista falsa da operação. Quem de fato partiu em silêncio, de carona num
ônibus de estudantes secundaristas em viagem para Belo Horizonte, foi
Gilberto Carlos Gonçalves Sousa. Àquela altura, a Polícia Federal já
monitorava os estudantes piauienses para tomar a cópia do filme. O
encontro de Gilberto Sousa com a turma da UFPI seguiu todos os ritos de
uma operação de guerrilha com o propósito de fugir do cerco da polícia.
Aníbal Lins, Márcio Jerry, Arleth Borges e Magno Moraes, na sede do
DCE, discutindo estratégias para anular as eleições da UNE na UFMA
Ao receber a fita, Gilberto fora orientado a tomar o ônibus de volta no
vizinho município de Timon (MA). E ainda como estratégia, pois sabia
que estaria sendo esperado pela polícia na rodoviária de São Luís,
trocou de ônibus em Peritoró. Em São Luís, esperava ser recebido na
rodoviária por Iguaracira, à época esposa do então deputado estadual
Luiz Pedro, um dos articuladores da operação. Iguaracira não apareceu.
Gilberto tomou um táxi com destino ao Campus do Bacanga, com o filme a
tiracolo. A data e o horário de exibição de “Je vous salue, Marie” já
estavam marcados na UFMA: 29 de maio de 1986, uma quinta-feira, às 18h.
Tudo planejado, horário melhor não havia pra reunir estudantes dos
turnos vespertino e noturno.
O Auditório Jarbas Passarinho (4) fica no Centro de Ciências Humanas
(CCH) da Universidade Federal do Maranhão, mais conhecido como
Castelão. O prédio do CCH era – e continua sendo - o eixo de
concentração e roteiro de alunos, afinal abrigava, além de cursos como
História, Geografia, Letras e Filosofia, agências bancárias, algumas
pró-reitorias, a sede do DCE, a Área de Vivência e o Restaurante
Universitário. O auditório, localizado bem no miolo do Castelão, foi
por muito tempo símbolo dos principais embates acadêmicos, dos grandes
seminários, das semanas de arte (5), das palestras com convidados
ilustres, das aulas inaugurais. Tinha a cara da universidade, uma
espécie de segunda morada dos universitários.
As calculadas artimanhas de Gilberto Sousa atrasariam o início de
apresentação da fita. Estudantes, professores e pessoas da comunidade
começaram a chegar ao local de exibição desde as 16h. O auditório
comportava 250 pessoas sentadas. Mas a notícia de que a Polícia Federal
ocuparia a universidade para proibir a exibição se espalhou pelo campus
e assanhou mais ainda a comunidade acadêmica. O eleitor havia mordido a
isca.
O que seria uma ação isolada da turma do PCdoB e dos apoiadores da
chapa UNE Livre acabou se transformando num ato conjunto de todas as
correntes do movimento estudantil, de artistas, de curiosos. Afinal, um
polêmico filme de Godard, censurado por Sarney, era assunto de
discussões acaloradas Brasil adentro. A presidente do DCE, Arleth
Borges, apoiou o movimento e também lutou para que o filme fosse
exibido.
A ocupação do Auditório Jarbas Passarinho fora previamente autorizada
uma semana antes pelo reitor José Maria Cabral Marques, que depois
mudou de ideia ao tomar conhecimento do conteúdo do filme proibido pelo
governo federal. Por volta das 19h já eram cerca de 500 espectadores
amontoados nas cadeiras, no chão, na escadaria do palco, no hall de
entrada. A essa altura, o prédio do Castelão havia sido cercado pela
Polícia Federal e a ordem era evacuar o auditório e levar presos os
organizadores do ato. A tensão aumentou mais ainda com o corte parcial
da energia e da refrigeração do auditório. A plateia não se intimidou
com o calor. Aulas suspensas, a universidade praticamente parada para
receber Godard.
Nonato Martins, Zeca Moreno, Luiz Pedro e Olímpio Guimarães aguardam
ansiosamente Gilberto Sousa e a cópia VHS no saguão de entrada do
auditório. Sem sucesso, a polícia já havia feito uma busca pela fita na
sede do DCE. Gilberto finalmente chega ao auditório com o tão esperado
filme e é recebido como herói sob aplausos de uma plateia tão
impaciente quanto aflita.
A aflição dá lugar ao risível quando, às 20h, os organizadores do ato
dão início à exibição do filme num aparelho de TV Philips de 20
polegadas colocado no palco e conectado ao videocassete. Falado em
francês e com legendas em português, a obra de Godard tem ali talvez a
sua exibição mais bizarra da história. Zeca Moreno ao microfone
reproduz os diálogos de “Je vous salue, Marie”, ora ensaiando um
falsete para acompanhar a desenvoltura da Virgem Maria, ora ao natural
na pele de José.
Em meio aos cochichos da plateia, claro que o filme propriamente dito
cai para o segundo plano daquela cena. Lá pelas tantas a Polícia
Federal ameaça invadir o auditório, mas recua. Retransmitida no
Maranhão pela TV Difusora (6), a Globo envia equipe de reportagem ao
campus, porém desiste no meio do caminho temendo represália dos
estudantes.
A emissora de Roberto Marinho, cujo jornalismo esteve associado durante
os anos de chumbo aos interesses dos generais, não era bem vista pelos
estudantes ao longo de toda a década de 1980. A Polícia Federal
amealhou fama de tortura, arapongagem e perseguição a militantes de
esquerda e estudantes inconformados. Essas duas organizações só
entravam nas universidades pela porta dos fundos, e com a soberba
anuência dos magníficos reitores.
A Polícia Federal que hoje recebe aplausos pelas prisões espetaculosas
de figuras das altas rodas, políticos envolvidos em maracutaias e
empresários sonegadores de impostos é a mesma que ontem intimidava
jovens estudantes, promovia censura, forjava dossiês e infiltrava-se
nas assembleias e reuniões de universitários.
E o que era a Globo - que nesses últimos tempos ufana-se do jornalismo
cheio de ética e pudor estético, do padrão que não permite isso, não
pode aquilo, da cobertura implacável dos escândalos da República, da
bancada do “Jornal Nacional” que mais parece a última instância da
moral? Já vivia a glória da televisão de maior audiência do País, com
sua rica teledramaturgia transformada numa imensa teia de desvio de
retina. A novela da Globo foi durante anos uma espécie de rede social
dos brasileiros, curtida, comentada e compartilhada, do botequim ao
salão de beleza. Reproduzia ainda um jornalismo servil, de
conveniência, ao modelo Amaral Neto dos anos 1970. Em manifestações
como a campanha de rua por eleições diretas no Brasil, entre 1983 e
1984, a emissora e seus repórteres eram hostilizados com frases do tipo
“O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo!”.
Em quase uma hora e meia de exibição – grande parte do público
acompanhou o filme até o final - , “Je vous salue, Marie” deixou marcas
dentro e fora do campus. Temendo ser abordado pela Polícia Federal,
Gilberto Sousa saiu da UFMA escondido no porta-malas de um táxi.
Exilou-se por uma semana na casa dos militantes do PCdoB Marcos
Kowarick e Nádia Campeão, no bairro do Filipinho. Mas não escapou de
ser indiciado e chamado a depor na sede da Polícia Federal, na avenida
Kennedy. Lá soube que o delegado já tinha a ficha completa de toda a
militância do movimento estudantil. Sobrou também para Edmundo Reis,
que foi intimado a prestar depoimento e indiciado em inquérito da PF.
Na terça-feira da semana seguinte, dia 3 de junho, os estudantes
Olímpio Guimarães e Uirapuru Pereira chegaram a ser presos pela Polícia
Federal, nas proximidades do Colégio Maristas, no Centro de São Luís,
sob a alegação de serem os responsáveis pela exibição de “Je vous
salue, Marie” no auditório da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
Quem deu cobertura aos estudantes indiciados da UFMA e da UEMA, e
acabou livrando-os de problemas futuros, foi o então líder sindical
Washington Luís Oliveira, na época presidente do diretório municipal do
PCdoB.
Capa do jornal "Diário do Norte" chama a atenção para as prisões provocadas pela exibição do filme de Godard
A igreja, a quem os estudantes imputaram a responsabilidade pela
censura durante o ato no auditório da UFMA, foi forçada a se justificar
no dia seguinte. Em reportagem no jornal “O Imparcial” do dia 31 de
maio de 1986, o então arcebispo de São Luís, Dom Paulo Ponte,
classificou de correta a atitude da polícia. “Apenas cumpriram ordens
superiores”, disse ele. Segundo o arcebispo, o filme “nada diz sobre a
Virgem Santíssima”, tampouco vai de encontro a qualquer dogma da
igreja. “É apenas uma ficção de um autor francês que tentou imitar uma
história moderna em cima da família cristã, o que não conseguiu”. A
ideia de proibir o filme, de acordo com Dom Paulo Ponte, não partiu da
igreja.
Não resta dúvida de que foi um mês diferente dentre tantos outros que
eu ainda viveria na universidade. Um ano para não se esquecer. O maio
oito meia teve um significado especial, uma representação que não se
apaga de uma luta que não era nossa, deixada no vão dos becos por
outras gerações que venceram ou que tombaram. Um filme confuso com
certa carga dramática, a legenda que não se lia de longe, a polícia à
espreita, o calor. Sem armas na mão, espremidos no auditório e
assustados com a fúria de cinco ou seis agentes federais, um dia nos
rendemos ao redemoinho psicológico de Godard.
“A Polícia Federal só não invadiu o auditório por conta da
quantidade de pessoas que estavam lá dentro e por ter a Igreja como
responsável pelo veto ao filme. Não fosse isso, haveria invasão como
forma de reprimir aquele nosso ato de desobediência civil”
José Ribamar Soares Moreno, o “Zeca”
“O jornal O Imparcial chegou a divulgar reportagem atribuindo
a organização do ato [de exibição do filme] à diretoria do DCE. Acho
que isso aconteceu devido talvez a uma relação muito próxima do pessoal
do DCE com os jornalistas. No outro dia fui até o jornal pedir direito
de resposta, mas eles colocaram a nossa versão na página de polícia”
José Ribamar Soares Moreno, o “Zeca”
“Foi um ato de rebeldia que marcou para sempre a minha vida. Era uma
estratégia de campanha que extrapolou os limites do movimento
estudantil, fugiu do nosso controle e acabou recebendo o apoio de todos
que estavam na universidade e não aceitavam a repressão”
Gilberto Carlos Gonçalves Sousa
“Valeu muito a pena aquela luta. O episódio do filme foi
emblemático. Fizemos de tudo para passar o filme. Era uma questão de
honra. Não pelo filme em si, mas pelo que ele representava naquele
momento. Era contra a censura que já havia sido extirpada, mas ainda
havia resquícios aqui e ali. Contra a posição da igreja, que sempre foi
nossa aliada nas lutas, e que naquele momento pressionou o presidente
Sarney para proibir o filme. Jamais vou esquecer”
Gilberto Carlos Gonçalves Sousa
“O mais importante de tudo foi o fator simbólico do ato, que não era
mais somente de um grupo, mas de todos que lutavam por liberdade de
expressão, contra qualquer tipo de autoritarismo”
Arleth Borges, ex-presidente do DCE da UFMA
“[A exibição do filme] é um ato de protesto contra a censura que
ainda existe. Apesar de novos ventos, ainda há resquícios de
autoritarismo. Quando se impede que um filme seja exibido em um local é
porque ainda se caça a liberdade de escolha e expressão”
Nonato Martins (“O Imparcial”, 31/06/86)
“Ontem, arbitrariamente, usando mais um dos seus modos fascistas,
ele [reitor José Maria Cabral Marques] retirou a autorização e pediu a
garantia da Polícia Federal, que nos ameaçou, inclusive de prisão”
Nonato Martins (“O Imparcial”, 31/06/86)
“O que aconteceu na época foi um terrível engano. O papa [João Paulo
II] falou do mal que esse filme poderia causar à comunidade cristã,
apenas isso. Agora, aqui no Brasil, a Igreja apenas acatou e concordou
com a proibição feita pelo presidente da República. A ideia de proibir
o filme nunca partiu da Igreja”
Dom Paulo Ponte (“O Imparcial”, 31/06/86)
“É importante que os jovens assistam ao filme e se certifiquem de
que em nada ele depõe contra imagem de Maria, tampouco contra o
mistério do nascimento de Cristo”
Dom Paulo Ponte (“O Imparcial”, 31/06/86)
NOTAS DE RODAPÉ
(1) “Violência no campo e reforma agrária” foi o tema de encontro
realizado entre os dias 21 e 23 de maio de 1986 na cidade de Teresina
(PI) com a participação de bispos do Maranhão e Piauí. Dom Alcimar
Caldas Magalhães, da diocese de Imperatriz (MA), disse que a evolução
econômica e social do País dependia da transformação do latifúndio em
terra produtiva, repartida entre aqueles que dela precisam para
sobreviver.
(2) A censura no Brasil só foi efetivamente extinta no ano de 1987, com
a aprovação preliminar do anteprojeto da Constituição da República
promulgada no Congresso Nacional em outubro de 1988. No seu artigo 5o,
inciso IX, diz a Carta Magna: “É livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente
de censura ou licença”.
(3) No dia 20 de junho de 1986 foi inaugurado o primeiro shopping
center de São Luís, na avenida Colares Moreira, no bairro do
Renascença. Junto com o Tropical Shopping, de propriedade do empresário
Roosevelt Murad, foi inaugurado o Cine Tropical, que abriu a
programação com a exibição do filme “Cocoon”, um longa norte-americano
de ficção científica dirigido por Ron Howard. Em maio de 1986, havia
quatro cinemas abertos em São Luís: os cines Alpha, Passeio, Roxy e
Monte Castelo.
(4) Em finais da década de 1980, estudantes da Universidade Federal do
Maranhão decidiram cortar todos os laços que associavam aquela
instituição de ensino aos governos do período de ditadura militar. O
primeiro alvo foi o auditório localizado no Centro de Ciências Humanas.
O nome Jarbas Passarinho remetia ao político de formação militar
signatário do Ato Institucional No 5 do governo Médici. Os estudantes
organizaram uma manifestação para a retirada do nome de Jarbas
Passarinho, letra por letra, da fachada do prédio, que passou a se
chamar Auditório Central dos Estudantes.
(5) Duas semanas depois da exibição do filme “Je vous salue, Marie”, o
palco do Auditório Jarbas Passarinho deu lugar ao show “Umaizum”, de
Nosly Junior e um cara que se apresentava apenas com o nome de Zeca,
que havia abandonado pelo caminho o curso de Comunicação da UFMA. No
repertório, músicas como “Sexta-feira 13”, “Claridade”, “Preto e
branco”, “Carrossel” e “Noves fora”. A produção do espetáculo era de
Nilson Marinho.
Nosly e Zeca, na foto de divulgação do show na UFMA
Zeca, Zeca Magrão e Nosly
(6) Como afiliada do SBT, a TV Mirante iniciou suas operações em
caráter experimental no dia 31 de maio de 1986 para transmissão dos
jogos da Copa do México, embora oficialmente só tenha entrado no ar no
dia 15 de março de 1987. A TV Difusora, empresa de comunicação
pertencente à família Bacelar, era afiliada da Globo desde 1968. A TV
Difusora foi vendida ao então governador do Maranhão, Epitácio
Cafeteira, em 1988, e depois à família Lobão. Em 1o de fevereiro de
1991, a TV Mirante passou a transmitir o sinal da Globo.
Fotos: arquivos dos jornais "O Estado do Maranhão", "O Imparcial" e "Diário do Norte"
Um quê de rebeldia
Washington Torreão
Naquele ano de 1986 tínhamos entrado em um mundo novo que era a
universidade, com toda a sua complexidade de siglas e instituições.
Expressões como autonomia universitária, os diversos conselhos etc.
eram coisas novas para mim. Inclusive a própria sensação de liberdade
que se ganha ao atingirmos o patamar da graduação, coisa diferente do
ensino médio e seus esquemas de acompanhamento dos alunos, situação da
qual tinha me livrado havia muito pouco tempo. Ainda palmilhava aquele
momento de minha vida. De repente a nossa turma primeiranista de
Economia, bem como os demais colegas de outros cursos, viu-se às voltas
com uma situação inusitada para aqueles dias tidos como de plena
democracia, considerando que a censura federal teria sido extinta numa
canetada no ano anterior, com o fim do ciclo dos militares. Tratava-se
de uma questão não só política, tradicional, como foram os casos de
censura nas últimas décadas, mas de posicionamento filosófico, uma
contenda entre a fortíssima Igreja Católica brasileira e setores mais
liberais da sociedade, normalmente postados à esquerda no
esquadrinhamento político nacional, que não tolerava mais a
possibilidade de viver sob a tal "censura".
A Igreja levou essa naquele momento e o filme foi proibido de ser
exibido no Brasil por pressão do clero sob complacência governamental.
A subversão à ordem estabelecida é própria aos estudantes. Naquele
momento da história do movimento estudantil ainda havia um quê de
rebeldia, de inconformismo com a herança autoritária legada por mais de
duas décadas de exceção política.
Deparamo-nos com uma exibição "clandestina" de “Je vous salue, Marie”,
do cineasta Jean-Luc Godard, no Auditório Jarbas Passarinho (hoje
Auditório Central da UFMA), que se encontrava tomado por alunos numa
expectativa pra lá de excitante, não só por podermos assistir ao filme
proibido governamentalmente, mas também pela possibilidade de sermos
presos pela Polícia Federal que, segundo informavam, poderia chegar a
qualquer momento e levar a todos de uma vez só, uma espécie de 'Ibiúna"
só nossa aqui da UFMA. Eu estava totalmente dominado por uma espécie de
saudade daquilo que não vivi, que não enfrentei, dada a impossibilidade
temporal, nasci nos anos de chumbo. Portanto eles escaparam de mim.
Restava aquele ajuntamento estudantil resistente para não só
assistirmos a uma película, mas como ação de resistência e
enfrentamento ao Estado censor, que não dialogava com a juventude, que
manipulava os indicadores da economia, que maquiava as pesquisas
eleitorais e que se associava (até hoje) com a imprensa conservadora.
Era tudo isso (e muito mais) que me movia e me fixava ali naquele
auditório.
À frente revezavam-se as lideranças estudantis da época a dizer que a
fita estava rodando pela cidade para despistar a polícia, à solta atrás
do primeiro universitário com uma cópia VHS nas mãos (uma anedota).
Horas passadas, creio eu que propositadamente, chegou o filme que foi
exibido numa TV a dezenas de metros da plateia e em francês!!
Não tínhamos a menor ideia de que servimos de massa de manobra dos
joguetes eleitorais das representações estudantis da época, apesar
disso ser evidente. Restou, pelo menos para mim, uma espécie de dever
cumprido com a democracia, tipo “um filho teu não foge à luta”, de um
Brasil que recebia uma nova geração de estudantes aguerridos,
intrépidos e sonhadores com uma democracia social plena.