quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Amor sem revolução - parte 7 - Maio oito meia



Primeiro ano da Nova República. O País vivia o transe total do Plano Cruzado e avistava com certa desconfiança o futuro da economia. O governo do então presidente José Sarney era de incertezas, apesar da lua de mel do congelamento de preços. Líquida e certa mesmo só a fé na conquista do tetra campeonato de futebol no México. Sarney, bombardeado noite e dia pelo PMDB de Ulysses Guimarães e acossado pelas instituições da República, experimentava os primeiros dissabores do cargo.

O Maranhão tinha como governador o pecuarista Luiz Rocha, ligado à UDR e, por isso mesmo, mal visto pela ala progressista da Igreja Católica. O estado atravessava um período turbulento de conflitos agrários (1), situação agravada em 10 de maio de 1986 com o assassinato do padre Josimo Tavares, coordenador da Comissão Pastoral da Terra na região sul do estado, que compreendia a inflamável área do Bico do Papagaio.

Cenário econômico, eleições estudantis, opressão social, a força do clero e a questão agrária, temas que incendiavam os debates em sala de aula, nos corredores e nas assembleias de curso das universidades, eram também a nossa revolução pelo discurso. Mas um discurso político fechado, meio tosco, que a rigor não descortinava a linha do horizonte meramente acadêmico. Olhando de dentro da universidade o mundo lá fora parecia embaçado, defeituoso e atrasado. Estávamos à frente, o nosso lugar era um pavimento acima da realidade, bem longe das discussões aparentemente pequeno-burguesas da juventude, como drogas e liberdade, comportamento e poder, produção cultural e sexualidade.

Maio, 1986. Éramos apenas os meninos recém desembarcados na Universidade Federal do Maranhão. Cada um com um sonho nos olhos apressados, feito câmeras nervosas enquadrando a nossa nouvelle vague fora de época. Os primeiros passos do primeiro semestre. Já encontramos na UFMA um campus minado pelas disputas de três grupos políticos: os petistas (hegemônico nos diretórios acadêmicos e DCE), os comunistas (ligados ao PCdoB) e os prestistas (ligados ao PCB de Luiz Carlos Prestes e da médica e militante comunista Maria Aragão).

O Brasil conviveu com o fantasma da censura até 1984 (2), quando chegou ao fim a ditadura militar e o reinado da inflexível Solange Hernandes, diretora da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão ligado ao Departamento de Polícia Federal. No dia 26 de março de 1985 o então ministro da Justiça, Fernando Lyra, divulgou mensagem afirmando que o governo da Nova República passava a abdicar do poder secular de censor da produção artística. “Fica hoje abolida toda e qualquer censura política de obras de arte e demais produções intelectuais. O Estado não vai exercer qualquer freio à produção de qualquer tipo de manifestação política em obras de arte”, disse o ministro.

De fato, por pressão de movimentos organizados pela classe artística, muitas produções culturais vieram a lume depois de anos na escuridão da censura, como o livro “Aracelli, meu amor”, do maranhense José Louzeiro; e os filmes “Pra frente, Brasil”, de Roberto Farias, e “Eles não usam black-tie”, de Leon Hirszman.

Havia, porém, mais pedras no caminho. Pressionado pela Igreja Católica, e contrariando o que havia dito o ministro Lyra em nome da abertura política, o presidente Sarney decidira, em fevereiro de 1986, proibir a exibição pública no Brasil do filme “Je vous salue, Marie” (França, 1985), do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard. A mesma estética provocadora, às vezes anárquica, usada por Godard em outros filmes que o consagraram como um dos maiores cineastas da segunda metade do século 20 estava presente no longa-metragem que expunha uma Virgem Maria de carne e osso.

Maria pela lente de Jean-Luc Godard

Com exibição também proibida em outros países católicos do chamado Terceiro Mundo, principalmente pelas declarações do papa João Paulo II, “Je vous salue, Marie” provocou polêmica por estimular o debate sobre a difícil convivência entre o corpo e a alma. No filme, a moderna Maria (Myriem Roussel) é frentista num posto de gasolina, joga basquete, fala palavrões, tem namorado e aparece nua em algumas cenas. José (Thierry Rode) é taxista, tem um caso com outra mulher e acusa Maria de traição ao saber de sua gravidez. O anjo Gabriel (Philippe Lacoste) também é um cidadão comum que tenta convencer José a aceitar a gravidez imaculada de Maria. Como num lance de quadrinhos, o longa apresenta a história paralela de um professor de ciências que tem um caso com uma de suas alunas (a bela Juliette Binoche) e dá aulas sobre a origem da vida.

Com esses ingredientes, o iconoclasta Godard de “Je vous salue, Marie” fez tremer os pilares da fé cristã e fomentou a interpretação maniqueísta de sua obra a ponto de provocar uma rusga de efeito prolongado entre Roberto Carlos e Caetano Veloso. No livro “Roberto Carlos em detalhes” (Editora Planeta, 2006), retirado das bancas dez dias depois de lançado por ordem judicial a pedido do “Rei”, o autor Paulo Cesar de Araújo conta que a proibição do filme no Brasil desencadeou uma reação de artistas, universitários, professores e profissionais liberais que não aceitavam a volta da censura. Muitos escreveram cartas ao Palácio do Planalto criticando a proibição. Na contramão, Roberto Carlos enviou telegrama ao presidente Sarney solidarizando-se com a igreja e apoiando publicamente a opção pela censura ao filme.

"Não vi e não gostaria de ver. Sou contra esse tipo de filme que mexe com divindades. Acho que deve haver respeito para com a Virgem Maria. Pelo que li sobre o filme estou de acordo com o presidente Sarney sobre sua proibição", dissera Roberto Carlos. Caetano, que assistira ao filme em Paris meses antes, reagiu em artigo no jornal “Folha de S. Paulo”: "O telegrama de Roberto Carlos a Sarney envergonha a nossa classe”. E foi mais adiante: "Vamos manter uma atitude de repúdio ao veto e de desprezo aos hipócritas e pusilânimes que o apoiam".

Roberto considerou deselegantes as declarações do cantor e compositor baiano. "Apoiei o veto por absoluta consciência de que o filme de Godard deturpa e desrespeita a história sagrada. Continuo contra a sua exibição porque sou um homem religioso e os valores cristãos são muito importantes para mim”, retrucara.

No campus da Universidade Federal do Maranhão, os estudantes Fernando Mitoso e Magno Moraes, à frente do Diretório Acadêmico do curso de Filosofia, iniciavam no dia 26 de maio, no auditório do Colégio Maristas, o 1o Seminário Maranhense Sobre Sexualidade. Era o ensaio inicial para o grande ato daquela semana, que teria como palco o Auditório Jarbas Passarinho, da UFMA. Juventude à flor da pele. As provocações de Godard apenas tiravam um fino em temas como liberação sexual, estética e filosofia do corpo, sexo e poder, a castração do prazer, entre outros assuntos abordados durante três dias pelo professor Márcio Marighela, da PUC de Campinas (SP).

Vista interna do Auditório Jarbas Passarinho, dois dias antes da exibição do filme "Je vous salue, Marie"

No dia 27 de maio, no anfiteatro do Centro de Ciências Sociais da UFMA, começava o 3o Encontro de Comunicação Social, que também duraria três dias. Em pauta, temas genéricos como os problemas do curso e a relação com o sistema de ensino no Brasil, perspectivas do mercado de trabalho e a obrigatoriedade do diploma de jornalista nas empresas de comunicação. Nos debates, a censura ao filme “Je vous salue, Marie” era tratada como uma questão política que inspirava atenção e cuidado porque feria a liberdade de expressão. Mas o tema ficou de fora da palestra de Waldemar Moreira, subchefe de reportagem do “Fantástico”, da TV Globo, que discorreu sobre a “revolução” que o programa provocava na televisão brasileira.

Waldemar Moreira, da TV Globo, em palestra para estudantes de Comunicação, no anfiteatro do Centro de Ciências Sociais

Com a obra de Godard proibida nos cinemas do País (3), a diretoria da União Nacional dos Estudantes (UNE), aproveitando o clamor dos movimentos sociais e culturais, decidiu distribuir cópias VHS do filme em universidades públicas brasileiras numa estratégia de campanha eleitoral. No 37o Congresso da UNE, realizado no mês de abril em Goiânia, os estudantes decidiram que depois de quase uma década a entidade realizaria, nos dias 4 e 5 de junho, eleições diretas para a sua nova diretoria. O então presidente Renildo Calheiros (alagoano filiado ao PCdoB, irmão do atual presidente do Senado, Renan Calheiros), eleito em 1984 e defensor da escolha indireta, fora vencido no congresso pelo voto das oposições.

“Je vous salue, Marie” transformou-se em programa de campanha da chapa UNE Livre, apoiada por Calheiros e que tinha Gisela Mendonça como candidata a presidente. De igual pra igual disputava a eleição com a UNE Livre (do PCdoB) a chapa Pra Sair Dessa Maré (ligada a setores do PT), a única com representante maranhense - Aníbal Lins, estudante de Economia que concorria ao cargo de vice-presidente para a região Norte. Corriam por fora as chapas Arrebentar a Boca do Balão (apoiada por setores do PSB, PMDB, PCB, PDT e MR-8), Tem Que Dar Certo (ligada ao PTB e ao PFL) e Borduna Democrática (estudantes de linha anarquista).

Primeiro dia de votação nas eleições para diretoria da UNE, no campus da UFMA

A chapa de Gisela Mendonça montou uma operação clandestina para fazer o filme de Godard chegar ao maior número possível de estudantes, em exibições coordenadas por lideranças políticas aliadas. Como não havia cópias suficientes para todos os estados, os estudantes do Maranhão recorreram aos universitários do Piauí. Na UFMA, o aliado da UNE Livre era o grupo do PCdoB (cujo núcleo universitário depois incorporaria o nome de Viração) que havia disputado pela chapa Pra Mudar o DCE, no início de 1986, a eleição para o Diretório Central dos Estudantes. Entre os integrantes do grupo estavam José Ribamar Soares Moreno, o “Zeca” (estudante de Medicina candidato a presidente), Nonato Martins (Economia), Gilberto Carlos Gonçalves Sousa (Farmácia), Alfredo, Alberto, Margareth, Rosângela, Ivete e Cristina. Os comunistas atrelados ao PCdoB perderam no voto para a chapa Alerta! Jacaré Parado Vira Bolsa, ligada ao PT, que tinha Arleth Borges como presidente, Aníbal Lins como secretário-geral, Márcio Jerry como secretário do Centro de Ciências Sociais e Celso Reis como secretario de Cultura, entre outros (veja imagem do panfleto abaixo cedido por Celso Reis).




Eleição da UNE ficou polarizada entre as chapas UNE Livre e Pra Sair Dessa Maré

Era maio oito meia, um maio meia oito reinventado, às avessas, menos plural, sem as barricadas do desejo. Os representantes do PCdoB na UNE, assim como os seus aliados maranhenses, não estavam interessados na linguagem cinematográfica de Godard, na transgressão de uma Maria em conflito com o seu sexo. O que estava em jogo era a eleição nacional da entidade, e o filme poderia ser a salvação. Os votos urgiam.

Alegando irregularidades na distribuição de cédulas de votação, as chapas Pra Sair Dessa Maré e Arrebentar a Boca do Balão afastaram-se do processo no segundo dia de eleição e pediram a anulação do pleito. O processo foi suspenso em alguns estados, inclusive no Maranhão, mas, apesar da reduzida participação estudantil, a eleição foi concluída debaixo de muitos protestos com a vitória da UNE Livre.

O estudante Edmundo dos Reis Luz, do curso de Letras da UFMA, fora escalado oficialmente pela turma do PCdoB/Viração para ir a Teresina (PI) buscar uma cópia da fita de “Je vous salue, Marie”. Mas era só uma pista falsa da operação. Quem de fato partiu em silêncio, de carona num ônibus de estudantes secundaristas em viagem para Belo Horizonte, foi Gilberto Carlos Gonçalves Sousa. Àquela altura, a Polícia Federal já monitorava os estudantes piauienses para tomar a cópia do filme. O encontro de Gilberto Sousa com a turma da UFPI seguiu todos os ritos de uma operação de guerrilha com o propósito de fugir do cerco da polícia.

Aníbal Lins, Márcio Jerry, Arleth Borges e Magno Moraes, na sede do DCE, discutindo estratégias para anular as eleições da UNE na UFMA

Ao receber a fita, Gilberto fora orientado a tomar o ônibus de volta no vizinho município de Timon (MA). E ainda como estratégia, pois sabia que estaria sendo esperado pela polícia na rodoviária de São Luís, trocou de ônibus em Peritoró. Em São Luís, esperava ser recebido na rodoviária por Iguaracira, à época esposa do então deputado estadual Luiz Pedro, um dos articuladores da operação. Iguaracira não apareceu. Gilberto tomou um táxi com destino ao Campus do Bacanga, com o filme a tiracolo. A data e o horário de exibição de “Je vous salue, Marie” já estavam marcados na UFMA: 29 de maio de 1986, uma quinta-feira, às 18h. Tudo planejado, horário melhor não havia pra reunir estudantes dos turnos vespertino e noturno.

O Auditório Jarbas Passarinho (4) fica no Centro de Ciências Humanas (CCH) da Universidade Federal do Maranhão, mais conhecido como Castelão. O prédio do CCH era – e continua sendo - o eixo de concentração e roteiro de alunos, afinal abrigava, além de cursos como História, Geografia, Letras e Filosofia, agências bancárias, algumas pró-reitorias, a sede do DCE, a Área de Vivência e o Restaurante Universitário. O auditório, localizado bem no miolo do Castelão, foi por muito tempo símbolo dos principais embates acadêmicos, dos grandes seminários, das semanas de arte (5), das palestras com convidados ilustres, das aulas inaugurais. Tinha a cara da universidade, uma espécie de segunda morada dos universitários.

As calculadas artimanhas de Gilberto Sousa atrasariam o início de apresentação da fita. Estudantes, professores e pessoas da comunidade começaram a chegar ao local de exibição desde as 16h. O auditório comportava 250 pessoas sentadas. Mas a notícia de que a Polícia Federal ocuparia a universidade para proibir a exibição se espalhou pelo campus e assanhou mais ainda a comunidade acadêmica. O eleitor havia mordido a isca.

O que seria uma ação isolada da turma do PCdoB e dos apoiadores da chapa UNE Livre acabou se transformando num ato conjunto de todas as correntes do movimento estudantil, de artistas, de curiosos. Afinal, um polêmico filme de Godard, censurado por Sarney, era assunto de discussões acaloradas Brasil adentro. A presidente do DCE, Arleth Borges, apoiou o movimento e também lutou para que o filme fosse exibido.

A ocupação do Auditório Jarbas Passarinho fora previamente autorizada uma semana antes pelo reitor José Maria Cabral Marques, que depois mudou de ideia ao tomar conhecimento do conteúdo do filme proibido pelo governo federal. Por volta das 19h já eram cerca de 500 espectadores amontoados nas cadeiras, no chão, na escadaria do palco, no hall de entrada. A essa altura, o prédio do Castelão havia sido cercado pela Polícia Federal e a ordem era evacuar o auditório e levar presos os organizadores do ato. A tensão aumentou mais ainda com o corte parcial da energia e da refrigeração do auditório. A plateia não se intimidou com o calor. Aulas suspensas, a universidade praticamente parada para receber Godard.

Nonato Martins, Zeca Moreno, Luiz Pedro e Olímpio Guimarães aguardam ansiosamente Gilberto Sousa e a cópia VHS no saguão de entrada do auditório. Sem sucesso, a polícia já havia feito uma busca pela fita na sede do DCE. Gilberto finalmente chega ao auditório com o tão esperado filme e é recebido como herói sob aplausos de uma plateia tão impaciente quanto aflita.

A aflição dá lugar ao risível quando, às 20h, os organizadores do ato dão início à exibição do filme num aparelho de TV Philips de 20 polegadas colocado no palco e conectado ao videocassete. Falado em francês e com legendas em português, a obra de Godard tem ali talvez a sua exibição mais bizarra da história. Zeca Moreno ao microfone reproduz os diálogos de “Je vous salue, Marie”, ora ensaiando um falsete para acompanhar a desenvoltura da Virgem Maria, ora ao natural na pele de José.

Em meio aos cochichos da plateia, claro que o filme propriamente dito cai para o segundo plano daquela cena. Lá pelas tantas a Polícia Federal ameaça invadir o auditório, mas recua. Retransmitida no Maranhão pela TV Difusora (6), a Globo envia equipe de reportagem ao campus, porém desiste no meio do caminho temendo represália dos estudantes.

A emissora de Roberto Marinho, cujo jornalismo esteve associado durante os anos de chumbo aos interesses dos generais, não era bem vista pelos estudantes ao longo de toda a década de 1980. A Polícia Federal amealhou fama de tortura, arapongagem e perseguição a militantes de esquerda e estudantes inconformados. Essas duas organizações só entravam nas universidades pela porta dos fundos, e com a soberba anuência dos magníficos reitores.

A Polícia Federal que hoje recebe aplausos pelas prisões espetaculosas de figuras das altas rodas, políticos envolvidos em maracutaias e empresários sonegadores de impostos é a mesma que ontem intimidava jovens estudantes, promovia censura, forjava dossiês e infiltrava-se nas assembleias e reuniões de universitários.

E o que era a Globo - que nesses últimos tempos ufana-se do jornalismo cheio de ética e pudor estético, do padrão que não permite isso, não pode aquilo, da cobertura implacável dos escândalos da República, da bancada do “Jornal Nacional” que mais parece a última instância da moral? Já vivia a glória da televisão de maior audiência do País, com sua rica teledramaturgia transformada numa imensa teia de desvio de retina. A novela da Globo foi durante anos uma espécie de rede social dos brasileiros, curtida, comentada e compartilhada, do botequim ao salão de beleza. Reproduzia ainda um jornalismo servil, de conveniência, ao modelo Amaral Neto dos anos 1970. Em manifestações como a campanha de rua por eleições diretas no Brasil, entre 1983 e 1984, a emissora e seus repórteres eram hostilizados com frases do tipo “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo!”.

Em quase uma hora e meia de exibição – grande parte do público acompanhou o filme até o final - , “Je vous salue, Marie” deixou marcas dentro e fora do campus. Temendo ser abordado pela Polícia Federal, Gilberto Sousa saiu da UFMA escondido no porta-malas de um táxi. Exilou-se por uma semana na casa dos militantes do PCdoB Marcos Kowarick e Nádia Campeão, no bairro do Filipinho. Mas não escapou de ser indiciado e chamado a depor na sede da Polícia Federal, na avenida Kennedy. Lá soube que o delegado já tinha a ficha completa de toda a militância do movimento estudantil. Sobrou também para Edmundo Reis, que foi intimado a prestar depoimento e indiciado em inquérito da PF.

Na terça-feira da semana seguinte, dia 3 de junho, os estudantes Olímpio Guimarães e Uirapuru Pereira chegaram a ser presos pela Polícia Federal, nas proximidades do Colégio Maristas, no Centro de São Luís, sob a alegação de serem os responsáveis pela exibição de “Je vous salue, Marie” no auditório da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Quem deu cobertura aos estudantes indiciados da UFMA e da UEMA, e acabou livrando-os de problemas futuros, foi o então líder sindical Washington Luís Oliveira, na época presidente do diretório municipal do PCdoB.

Capa do jornal "Diário do Norte" chama a atenção para as prisões provocadas pela exibição do filme de Godard

A igreja, a quem os estudantes imputaram a responsabilidade pela censura durante o ato no auditório da UFMA, foi forçada a se justificar no dia seguinte. Em reportagem no jornal “O Imparcial” do dia 31 de maio de 1986, o então arcebispo de São Luís, Dom Paulo Ponte, classificou de correta a atitude da polícia. “Apenas cumpriram ordens superiores”, disse ele. Segundo o arcebispo, o filme “nada diz sobre a Virgem Santíssima”, tampouco vai de encontro a qualquer dogma da igreja. “É apenas uma ficção de um autor francês que tentou imitar uma história moderna em cima da família cristã, o que não conseguiu”. A ideia de proibir o filme, de acordo com Dom Paulo Ponte, não partiu da igreja.

Não resta dúvida de que foi um mês diferente dentre tantos outros que eu ainda viveria na universidade. Um ano para não se esquecer. O maio oito meia teve um significado especial, uma representação que não se apaga de uma luta que não era nossa, deixada no vão dos becos por outras gerações que venceram ou que tombaram. Um filme confuso com certa carga dramática, a legenda que não se lia de longe, a polícia à espreita, o calor. Sem armas na mão, espremidos no auditório e assustados com a fúria de cinco ou seis agentes federais, um dia nos rendemos ao redemoinho psicológico de Godard.


“A Polícia Federal só não invadiu o auditório por conta da quantidade de pessoas que estavam lá dentro e por ter a Igreja como responsável pelo veto ao filme. Não fosse isso, haveria invasão como forma de reprimir aquele nosso ato de desobediência civil”
José Ribamar Soares Moreno, o “Zeca”

“O jornal O Imparcial chegou a divulgar reportagem atribuindo a organização do ato [de exibição do filme] à diretoria do DCE. Acho que isso aconteceu devido talvez a uma relação muito próxima do pessoal do DCE com os jornalistas. No outro dia fui até o jornal pedir direito de resposta, mas eles colocaram a nossa versão na página de polícia”
José Ribamar Soares Moreno, o “Zeca”

“Foi um ato de rebeldia que marcou para sempre a minha vida. Era uma estratégia de campanha que extrapolou os limites do movimento estudantil, fugiu do nosso controle e acabou recebendo o apoio de todos que estavam na universidade e não aceitavam a repressão”
Gilberto Carlos Gonçalves Sousa

“Valeu muito a pena aquela luta. O episódio do filme foi emblemático. Fizemos de tudo para passar o filme. Era uma questão de honra. Não pelo filme em si, mas pelo que ele representava naquele momento. Era contra a censura que já havia sido extirpada, mas ainda havia resquícios aqui e ali. Contra a posição da igreja, que sempre foi nossa aliada nas lutas, e que naquele momento pressionou o presidente Sarney para proibir o filme. Jamais vou esquecer”
Gilberto Carlos Gonçalves Sousa

“O mais importante de tudo foi o fator simbólico do ato, que não era mais somente de um grupo, mas de todos que lutavam por liberdade de expressão, contra qualquer tipo de autoritarismo”
Arleth Borges, ex-presidente do DCE da UFMA

“[A exibição do filme] é um ato de protesto contra a censura que ainda existe. Apesar de novos ventos, ainda há resquícios de autoritarismo. Quando se impede que um filme seja exibido em um local é porque ainda se caça a liberdade de escolha e expressão”
Nonato Martins (“O Imparcial”, 31/06/86)

“Ontem, arbitrariamente, usando mais um dos seus modos fascistas, ele [reitor José Maria Cabral Marques] retirou a autorização e pediu a garantia da Polícia Federal, que nos ameaçou, inclusive de prisão”
Nonato Martins (“O Imparcial”, 31/06/86)

“O que aconteceu na época foi um terrível engano. O papa [João Paulo II] falou do mal que esse filme poderia causar à comunidade cristã, apenas isso. Agora, aqui no Brasil, a Igreja apenas acatou e concordou com a proibição feita pelo presidente da República. A ideia de proibir o filme nunca partiu da Igreja”
Dom Paulo Ponte (“O Imparcial”, 31/06/86)

“É importante que os jovens assistam ao filme e se certifiquem de que em nada ele depõe contra imagem de Maria, tampouco contra o mistério do nascimento de Cristo”
Dom Paulo Ponte (“O Imparcial”, 31/06/86)


NOTAS DE RODAPÉ

(1) “Violência no campo e reforma agrária” foi o tema de encontro realizado entre os dias 21 e 23 de maio de 1986 na cidade de Teresina (PI) com a participação de bispos do Maranhão e Piauí. Dom Alcimar Caldas Magalhães, da diocese de Imperatriz (MA), disse que a evolução econômica e social do País dependia da transformação do latifúndio em terra produtiva, repartida entre aqueles que dela precisam para sobreviver.

(2) A censura no Brasil só foi efetivamente extinta no ano de 1987, com a aprovação preliminar do anteprojeto da Constituição da República promulgada no Congresso Nacional em outubro de 1988. No seu artigo 5o, inciso IX, diz a Carta Magna: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

(3) No dia 20 de junho de 1986 foi inaugurado o primeiro shopping center de São Luís, na avenida Colares Moreira, no bairro do Renascença. Junto com o Tropical Shopping, de propriedade do empresário Roosevelt Murad, foi inaugurado o Cine Tropical, que abriu a programação com a exibição do filme “Cocoon”, um longa norte-americano de ficção científica dirigido por Ron Howard. Em maio de 1986, havia quatro cinemas abertos em São Luís: os cines Alpha, Passeio, Roxy e Monte Castelo.

(4) Em finais da década de 1980, estudantes da Universidade Federal do Maranhão decidiram cortar todos os laços que associavam aquela instituição de ensino aos governos do período de ditadura militar. O primeiro alvo foi o auditório localizado no Centro de Ciências Humanas. O nome Jarbas Passarinho remetia ao político de formação militar signatário do Ato Institucional No 5 do governo Médici. Os estudantes organizaram uma manifestação para a retirada do nome de Jarbas Passarinho, letra por letra, da fachada do prédio, que passou a se chamar Auditório Central dos Estudantes.

(5) Duas semanas depois da exibição do filme “Je vous salue, Marie”, o palco do Auditório Jarbas Passarinho deu lugar ao show “Umaizum”, de Nosly Junior e um cara que se apresentava apenas com o nome de Zeca, que havia abandonado pelo caminho o curso de Comunicação da UFMA. No repertório, músicas como “Sexta-feira 13”, “Claridade”, “Preto e branco”, “Carrossel” e “Noves fora”. A produção do espetáculo era de Nilson Marinho.

Nosly e Zeca, na foto de divulgação do show na UFMA


Zeca, Zeca Magrão e Nosly

(6) Como afiliada do SBT, a TV Mirante iniciou suas operações em caráter experimental no dia 31 de maio de 1986 para transmissão dos jogos da Copa do México, embora oficialmente só tenha entrado no ar no dia 15 de março de 1987. A TV Difusora, empresa de comunicação pertencente à família Bacelar, era afiliada da Globo desde 1968. A TV Difusora foi vendida ao então governador do Maranhão, Epitácio Cafeteira, em 1988, e depois à família Lobão. Em 1o de fevereiro de 1991, a TV Mirante passou a transmitir o sinal da Globo.

Fotos: arquivos dos jornais "O Estado do Maranhão", "O Imparcial" e "Diário do Norte"

Um quê de rebeldia

Washington Torreão

Naquele ano de 1986 tínhamos entrado em um mundo novo que era a universidade, com toda a sua complexidade de siglas e instituições. Expressões como autonomia universitária, os diversos conselhos etc. eram coisas novas para mim. Inclusive a própria sensação de liberdade que se ganha ao atingirmos o patamar da graduação, coisa diferente do ensino médio e seus esquemas de acompanhamento dos alunos, situação da qual tinha me livrado havia muito pouco tempo. Ainda palmilhava aquele momento de minha vida. De repente a nossa turma primeiranista de Economia, bem como os demais colegas de outros cursos, viu-se às voltas com uma situação inusitada para aqueles dias tidos como de plena democracia, considerando que a censura federal teria sido extinta numa canetada no ano anterior, com o fim do ciclo dos militares. Tratava-se de uma questão não só política, tradicional, como foram os casos de censura nas últimas décadas, mas de posicionamento filosófico, uma contenda entre a fortíssima Igreja Católica brasileira e setores mais liberais da sociedade, normalmente postados à esquerda no esquadrinhamento político nacional, que não tolerava mais a possibilidade de viver sob a tal "censura".

A Igreja levou essa naquele momento e o filme foi proibido de ser exibido no Brasil por pressão do clero sob complacência governamental.

A subversão à ordem estabelecida é própria aos estudantes. Naquele momento da história do movimento estudantil ainda havia um quê de rebeldia, de inconformismo com a herança autoritária legada por mais de duas décadas de exceção política.

Deparamo-nos com uma exibição "clandestina" de “Je vous salue, Marie”, do cineasta Jean-Luc Godard, no Auditório Jarbas Passarinho (hoje Auditório Central da UFMA), que se encontrava tomado por alunos numa expectativa pra lá de excitante, não só por podermos assistir ao filme proibido governamentalmente, mas também pela possibilidade de sermos presos pela Polícia Federal que, segundo informavam, poderia chegar a qualquer momento e levar a todos de uma vez só, uma espécie de 'Ibiúna" só nossa aqui da UFMA. Eu estava totalmente dominado por uma espécie de saudade daquilo que não vivi, que não enfrentei, dada a impossibilidade temporal, nasci nos anos de chumbo. Portanto eles escaparam de mim. Restava aquele ajuntamento estudantil resistente para não só assistirmos a uma película, mas como ação de resistência e enfrentamento ao Estado censor, que não dialogava com a juventude, que manipulava os indicadores da economia, que maquiava as pesquisas eleitorais e que se associava (até hoje) com a imprensa conservadora. Era tudo isso (e muito mais) que me movia e me fixava ali naquele auditório.

À frente revezavam-se as lideranças estudantis da época a dizer que a fita estava rodando pela cidade para despistar a polícia, à solta atrás do primeiro universitário com uma cópia VHS nas mãos (uma anedota).

Horas passadas, creio eu que propositadamente, chegou o filme que foi exibido numa TV a dezenas de metros da plateia e em francês!!

Não tínhamos a menor ideia de que servimos de massa de manobra dos joguetes eleitorais das representações estudantis da época, apesar disso ser evidente. Restou, pelo menos para mim, uma espécie de dever cumprido com a democracia, tipo “um filho teu não foge à luta”, de um Brasil que recebia uma nova geração de estudantes aguerridos, intrépidos e sonhadores com uma democracia social plena.

Um comentário:

  1. Muito boa essa história, Genivaldo! E como essa há muitas outras que as novas gerações precisavam conhecer! Parabéns! Fábio Palácio

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