segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Katu Arkonada: O ciclo progressista não estava morto, andava na farra


A esmagadora vitória da união entre kirchnerismo e peronismo nas eleições primárias na Argentina, assegurando, salvo fraude eleitoral, a vitória no primeiro turno, volta a dar um impulso no ciclo progressista latino-americano. A iminente saída do macrismo de um governo do G20 deixa Bolsonaro no Brasil mais sozinho que nunca, e dificulta a ingerência de Donald Trump na América Latina.
Nunca houve o tal fim do ciclo progressista. Mas é necessário reconhecer que por alguns momentos esses governos se acomodaram e não geraram mudanças estruturais
Quiseram dá-lo por morto. A derrota do kirchnerismo no segundo turno das eleições gerais (novembro de 2015), unida à derrota do chavismo na Venezuela nas eleições legislativas (dezembro de 2015) e à perda do referendo para uma nova candidatura de Evo Morales (fevereiro de 2016), levaram muitos analistas da direita, mas também de alguns setores da esquerda, a decretar o fim do ciclo progressista iniciado por Hugo Chávez, Lula e Néstor Kirchner na Venezuela, Brasil e Argentina nos últimos anos do século 20 e primeiros do 21. 

O argumento principal era que estes governos progressistas, de esquerda e/ou nacional-populares, se aproveitaram do alto preço das commodities e conseguiram apoio popular mediante medidas assistencialistas de redistribuição parcial da riqueza. Não levavam em conta que os mesmos preços altos dos quais se aproveitaram os governos do ciclo progressistas também estavam disponíveis para governos como do Peru, Colômbia, ou um México, onde a taxa de extrema pobreza em 2018 (16,8%) é a mesma que havia em 2008, dez anos em que a pobreza patrimonial se reduzia de 49 a 48,8%. 

Já na Bolívia, em um lapso muito similar, a extrema pobreza passava de 38,4% a 15%. Ou seja, a redução da pobreza e da desigualdade em cada país da América Latina não dependia tanto dos preços das matérias-primas – mas de uma determinada vontade e políticas econômicas e sociais. 

Olhando para trás, Maurício Macri foi o primeiro, e único, candidato da direita que pôde vencer pela via eleitoral a um governo do ciclo progressista. Os demais governos foram depostos mediante golpes de Estado (Honduras em 2009), ou golpes parlamentares (Paraguai em 2012 e Brasil em 2016), aos quais se somou a lawfare, a perseguição judicial no Equador (agravada pela traição do senhor Lenín Moreno) contra Rafael Correa e Jorge Glas, no Brasil contra Lula e na própria Argentina contra Cristina Kirchner. Na Colômbia, não precisam perseguir judicialmente à dissidência, porque assassiná-la ou fazê-la desaparecer sai tão barato quanto a impunidade. 

Por esse motivo, a possível reeleição de Macri na presidência argentina era um fator-chave e determinante neste momento histórico. Revalidar nas urnas o projeto político de restauração neoliberal seria um duro golpe no ciclo progressista. 

Entretanto, a esmagadora vitória da união entre kirchnerismo e peronismo nas eleições primárias, obtendo mais de 15 pontos de vantagem sobre o macrismo (quase 20 no caso de Axel Kicillof sobre a atual governadora da província de Buenos Aires, Maria Eugenia Vidal) e assegurando, salvo fraude eleitoral, a vitória no primeiro turno, volta a dar um impulso no ciclo progressista latino-americano. 

A iminente saída do macrismo de um governo do G20 deixa Bolsonaro no Brasil mais sozinho que nunca, e dificulta a ingerência de Donald Trump na América Latina na medida em que o terceiro país latino-americano do G20, México, recuperou a soberania e deixou de ter uma política internacional subordinada ao Departamento de Estado. 

A derrota do macrismo é uma derrota de um modelo neoliberal que não encontra um líder nem um projeto político que possa dar-lhe continuidade. A vitória do kirchnerismo e do peronismo nas eleições primárias nos ensina, além disso, a importância da unidade do campo nacional-popular e de se centrar no que de verdade importa ao povo: educação, saúde, emprego e aposentadorias. Os bens comuns que o neoliberalismo destrói. 

De qualquer forma, apesar de ser verdade que nunca houve o tal fim do ciclo progressista, e que a história é dialética, um constante ir e vir de fluxos e refluxos, uma guerra de posições entre distintos projetos, é necessário reconhecer que por alguns momentos o ciclo progressista caiu na farra. Os governos progressistas se acomodaram e, mesmo que tenham redistribuído a riqueza e democratizado o Estado, não geraram mudanças estruturais para sustentar tais processos. Dormiram festejando as mudanças na luta institucional, deixando de lado a luta ideológica ou de massas. 

Mas sempre há tempo para corrigir os erros, ainda que seja, como no caso da Argentina, voltando depois de uma travessia do deserto como a que têm passado o kirchnerismo e o peronismo. Travessia em que tem se demonstrado a importância determinante dos líderes históricos, neste caso Cristina Fernández Kirchner. 

Como disse Máximo Kirchner na noite do triunfo das primárias, não se trata de reconstruir o que foi – mas de construir o que está por vir. Se a esta Argentina se soma o México de López Obrador em pleno processo de transformação, e se se mantém os governos da Bolívia e Uruguai neste ano, certamente encararemos um 2020 onde Trump tem muitas possibilidades de se reeleger, surfando de novo numa onda do ciclo progressista. 

Este artigo é dedicado a Gustavo Codas, um destes companheiros imprescindíveis que tornaram possível o auge do ciclo progressista latino-americano.
* Katu Arkonada é cientista político especialista em América Latina

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