domingo, 18 de agosto de 2019

Prestes, o comunista que sobreviveu a prisão, exílio e clandestinidade


No início do século passado, os oficiais do Exército brasileiro se sentiam incomodados com o descaso das forças dominantes do País, principalmente os grandes fazendeiros de Minas Gerais e São Paulo, que dominavam a política e as grandes decisões nacionais. Esses arrogantes “casacas” – como eram chamados pelos oficiais – os mantinham longe do poder, pagavam-lhes baixos soldos e não forneciam os armamentos, equipamentos e recursos necessários a um Exército decente.
Gaúcho, Prestes despontou como o mais amado e controverso personagem político da sua época, bem como o mais conhecido comunista do País
Os mais indignados com tais privações eram os jovens tenentes. Na década de 1920, eles se rebelam – com manifestos, tiros e mortes – em várias ocasiões contra os casacas. O movimento, que seria chamado de Tenentismo, eclodiria, entre outros lugares, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mas sua mais longa e radical manifestação se daria em 1925, no interior do Rio Grande do Sul. Dali, o capitão Luiz Carlos Prestes dá início a uma marcha que se estenderia por mais de dois anos e percorreria 25 mil km pelo Brasil, quando receberia o nome de Cavaleiro da Esperança.

Mesmo derrotado, o Tenentismo se tornaria um dos mais influentes movimentos políticos do país no século 20. A relevância política de seus integrantes se prolongaria por quase 60 anos, praticamente até o fim do mandato do presidente João Baptista Figueiredo (1979-1985).

E, entre todos os tenentes, o gaúcho Luiz Carlos Prestes despontaria como o mais amado e controverso personagem político da sua época. E seria, ainda, um dos que mais caro pagariam pela defesa intransigente que fazia das suas ideias políticas. Mesmo se ainda eram vagas, como quando, aos 27 anos, em marcha pelo país perseguido pelo Exército do então presidente Arthur Bernardes, alardeava propostas genéricas como a luta pelo barateamento da vida e melhor bem-estar para o povo.

Cinco anos mais tarde, exilado no Uruguai, o Cavaleiro da Esperança aprofundava-se no contato com o comunismo, postura ideológica que manteria até a sua morte, em março de 1990, aos 92 anos de idade, tornando-o o mais conhecido comunista brasileiro.

O início

Além da trajetória do homem político, o personagem de Luiz Carlos Prestes é notável. Nascido em 1898 em Porto Alegre, filho mais velho de um pai militar que tivera papel de destaque na proclamação da República, Luiz Carlos ficou órfão aos 10 anos, quando já morava com os pais no Rio de Janeiro. Sua família era de mulheres fortes, cultas e independentes para a época.

Sua avó materna, Ermelinda, iria mais de uma vez protestar diretamente às autoridades contra as perseguições políticas a seu neto. A mãe, Leocadia, e suas filhas o acompanharam aos vários países em que ele se exilou. Quando Prestes esteve preso (de 1936 a 1945), organizaram campanhas internacionais pedindo sua soltura.

A determinação obstinada que Prestes demonstraria em toda a sua vida já surgiu na época do Colégio Militar. Ali ele se formou com nota 10 em todas as disciplinas. Sua foto foi colocada no quadro de honra dos melhores alunos, mas retirada quando se tornou comunista. Aceito na Escola Militar de Realengo, também conseguiria as melhores notas da história da instituição, seguido de perto, mais tarde, pelos ex-presidentes Ernesto Geisel e João Figueiredo.

Formado engenheiro militar em 1920, Prestes começaria a ter contato com os primeiros sinais de descontentamento dos tenentes e aderiu às conspirações. Mas seria no Rio Grande do Sul, para onde fora transferido já como capitão, que ele participaria de um levante armado em solidariedade a tenentes rebeldes paulistas, que após o fracasso de um levante em 1924, estavam cercados no oeste do Paraná. Mesmo com poucos recursos e armas, Prestes organizou um grupo de 1.500 homens, a Coluna Prestes.

Durante dois anos e três meses, a Coluna driblou os inúmeros exércitos enviados contra ela. Aquela campanha inédita pelos mais remotos lugares do país tornou Prestes uma figura mítica, a respeito da qual corriam lendas: ele teria o poder de ficar invisível e o corpo fechado. Os moradores das grandes cidades vibravam com a figura do Cavaleiro da Esperança. Os jornais lhe dedicavam reportagens e editoriais. Publicações brasileiras e estrangeiras enviavam repórteres para entrevistá-lo.

A Coluna

Nunca houve na História do Brasil uma mobilização rebelde como a Coluna Prestes. Nos dois anos e três meses de existência do movimento, Prestes esteve à frente de um grupo de militares rebelados do Exército Brasileiro que percorreu, algumas vezes a cavalo, outras a pé, 25 mil quilômetros por 13 estados. O trajeto – tão extenso quanto uma viagem de ida e volta de Brasília ao Alasca – raramente foi feito por estradas.

A caravana, chamada pelos rebeldes de Coluna Invencível, caminhava em ziguezagues e idas e voltas, abrindo picadas em matas fechadas, por dentro de rios, no meio da caatinga e do agreste. E quase sempre à noite. O cuidado era para evitar as tropas regulares do Exército.

Desde o início da Coluna – em dezembro de 1925, ao partir de São Luís Gonzaga, na região das Missões gaúcha –, até quando seus membros se refugiaram na Bolívia, em fevereiro de 1927, o Exército tentou derrotá-la. Foram mobilizados dezenas de milhares de soldados, canhões, metralhadoras pesadas, policiais militares estaduais, jagunços de coronéis nordestinos e até os cangaceiros comandados por Lampião.

Diante de um aparato desses, os integrantes da Coluna – que no auge da sua força contou com 1.500 homens armados com fuzis e pistolas – evitavam ao máximo o confronto direto. Priorizavam a guerra de movimentos, contra a estratégia do pesado Exército de tentar cercá-los e atraí-los para a luta aberta.

Os rebeldes tinham a seu favor uma organização semelhante a uma estrutura guerrilheira. Inspirados pela experiência dos gaúchos – àquela época envolvidos em várias escaramuças políticas –, organizaram a tropa em pequenos grupos de até oito integrantes que preparavam sua alimentação e seu alojamento de maneira autônoma, deixando ágil a logística e o deslocamento. Da experiência guerreira gaúcha, também adotaram as potreadas – grupos que saíam, à vanguarda, requisitando cavalos e explorando o terreno.

Com as potreadas, a Coluna sempre esteve à frente do Exército no conhecimento das melhores rotas para fugas e emboscadas. Prestes e os seus homens resistiram a todas as investidas inimigas, derrotando 18 generais enviados contra eles pelo presidente Arthur Bernardes. Saíram do interior do Rio Grande do Sul até próximo a Teresina, no Piauí, que por pouco não invadiram.

Com o fim do mandato de Bernardes, contra o qual a Coluna se mobilizara, o movimento se esvaziou politicamente. Os revoltosos se retiraram para a Bolívia. Ali chegaram 620 homens, em andrajos, feridos e enfraquecidos. Mas não haviam sido derrotados, como afirmou à época o advogado Moreira Lima, que havia aderido ao movimento: “Não vencemos, mas não fomos vencidos”. Várias batalhas foram travadas com mortes, crueldades e fuzilamentos de ambos os lados.

No livro biográfico Luiz Carlos Prestes – Um Comunista Brasileiro, Anita Leocadia, sua filha, afirma que Prestes sempre tratou com mão de ferro os integrantes que saqueavam ou desrespeitavam os moradores das cidades pelas quais passaram. “Em alguns casos de maior gravidade, chegou-se ao fuzilamento dos culpados”, escreve a autora. Autoridades do governo semeavam o pânico entre os moradores com notícias falsas de que estes seriam brutalizados pelo movimento.

O Partido Comunista

Depois do fim da Coluna, Prestes e a família seguem para a Argentina, onde ele continua a ser procurado por jornalistas e por políticos interessados em atraí-lo para a oposição ao presidente Washington Luís. Emissários do Partido Comunista do Brasil (que, na época, adotava a sigla PCB) chegam a convidá-lo a concorrer à Presidência da República.

Mas sua relação com o Partido tinha altos e baixos. Os comunistas brasileiros temiam que o peso político de Prestes pudesse ter demasiada influência sobre o Partido e o acusavam, nessa época, de ser um pequeno-burguês. Por outro lado, a proximidade com o comunismo provocou o rompimento com os antigos tenentistas. Prestes se viu isolado.

Sua sorte mudaria em pouco tempo. Obrigado a sair da Argentina, após um golpe militar, muda-se para o Uruguai, com a mãe, Leocadia, e as quatro irmãs. Às voltas com um emprego mal remunerado, sem poder voltar ao Brasil – onde os comunistas eram perseguidos –, Prestes é convidado a mudar-se para a União Soviética, em 1930, e vai para Moscou. O Partido Comunista da União Soviética o acolheria, o que daria um novo status àquele que se tornaria, em pouco tempo, o mais relevante comunista brasileiro.

Apenas em 1934, o Partido Comunista do Brasil concordou em receber Luiz Carlos Prestes em suas fileiras. Declarado desertor do Exército pelo presidente Getúlio Vargas, Prestes deveria entrar no País com passaporte falso. Para acompanhá-lo e montar o álibi de que ele viajava em lua de mel, o partido soviético designou a jovem comunista alemã Olga Benario a acompanhá-lo. Os dois deveriam seguir da França, de navio, até os Estados Unidos e de lá para o Brasil. Em meio ao Atlântico, Prestes e Olga se apaixonam e se tornam, de fato, marido e mulher.

Mas o tempo tornava a se fechar no país. No início de 1935, forma-se a Aliança Nacional Libertadora (ANL), que congregava tenentes decepcionados com o governo, socialistas e comunistas. Prestes, vivendo na clandestinidade no Rio de Janeiro, é aclamado presidente de honra do movimento. A ANL, em novembro do mesmo ano, tenta um golpe para depor Vargas, que fracassa. Em retaliação, o presidente deflagra uma violenta onda de prisões.

Prestes é procurado por toda a parte no Rio e é preso, no dia 5 de março de 1936, em companhia de Olga. Levados para a Delegacia de Ordem Política e Social, o casal se vê pela última vez. Ele fica sabendo que a esposa está grávida por um bilhete que Olga consegue lhe enviar clandestinamente. Mais tarde, pela leitura de um jornal, toma conhecimento da deportação dela para a Alemanha nazista por ordem de Getúlio Vargas.

Olga Benario seria assassinada em abril de 1942, em uma câmara de gás em Bernburg, na Alemanha. Prestes só saberia disso três anos depois, em julho de 1945, quando um repórter lhe entregou um telegrama confirmando a morte da mulher.

Apesar de ter sido condenado a 30 anos de prisão, Prestes é libertado em 1945. Em uma rara distensão política para os comunistas, o Partido é legalizado e, em poucos meses, passa de mil membros para mais de 200 mil filiados. Em 28 de outubro, véspera da queda de Vargas, Prestes se encontraria pela primeira vez com a filha Anita, então com 9 anos, que vinha do exílio no México.

Se a Segunda Guerra Mundial havia acabado, começava a Guerra Fria (1945-1991), período de tensão entre a União Soviética e os países ocidentais, sobretudo os Estados Unidos. A época inauguraria uma intensa perseguição aos comunistas em todo o mundo ocidental. Em 1947, o Partido novamente é posto na ilegalidade e, no ano seguinte, os mandatos de todos os seus políticos são cassados. Privados da imunidade parlamentar, os comunistas voltaram para a clandestinidade.

Nova vida

Iniciava-se um duro período para Prestes. Conforme revelou para Anita Leocadia, os dez anos que se seguiram à volta da ilegalidade do Partido foram piores do que os nove anos em que esteve preso. Impedido de circular livremente, por estar vivendo clandestinamente, ele perde espaço dentro do Partido, que passa a ser controlado pelo secretário de Organização, Diógenes de Arruda Câmara.

Diógenes contribuiu involuntariamente para amenizar as agruras de Prestes quando resolveu encaminhar uma jovem militante, Maria do Carmo Ribeiro, filha de um antigo dirigente do Partido, para cuidar de seu aparelho (como os comunistas chamavam os locais usados como refúgio na vida clandestina). Em 1953, Prestes e Maria do Carmo se casam. O líder comunista, que se mantinha isolado desde a morte de Olga, dizia sempre gostar de crianças – e de seu casamento com Maria nasceram sete filhos.

O suicídio de Vargas, em 1954, trouxe uma profunda transformação na política nacional. O País começava a se modernizar em um processo que se aceleraria exponencialmente no mandato de Juscelino Kubitschek (1956-1961). As novas estruturas econômicas que surgiram no período fizeram com que o Partido mergulhasse em uma profunda discussão interna a respeito da sua estratégia política, com o surgimento de divergências importantes.

O regime liberal de JK permitiu que Prestes voltasse a se apresentar publicamente. Seu prestígio, inclusive internacional, era grande. Prestes foi convidado para importantes viagens para fora do Brasil. Encontrou-se com Mao Tsé-tung nas comemorações do 10º aniversário da Revolução Chinesa; representou o Partido em um congresso internacional em Moscou; foi a Cuba em 1961 e 1963, sendo recebido por Fidel Castro.

Racha

Mas em casa, ou seja, no Partido, as coisas não iam bem. No ambiente político conturbado que se abria no País com a sedução provocada pela Revolução Cubana, setores do partido começavam a rachar, dividir-se. Militantes como João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar lideram a reorganização do Partido Comunista do Brasil (agora com a sigla PCdoB), enquanto Prestes fica à frente do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Surgem, ainda, a Organização Revolucionária Marxista-Política Operária (Polop), a Ação Popular (AP) e outras organizações.

Algumas dessas organizações propunham a derrubada pelas armas do governo e a implantação de um governo socialista ou de uma gestão voltada ao interesse dos trabalhadores do campo, como fazia Francisco Julião, que lançava as ligas camponesas. Já Prestes propunha a substituição do governo de João Goulart – que assumira a presidência no lugar de Jânio Quadros – por um governo nacionalista e democrático. A seu ver, antes do triunfo da revolução socialista, o Brasil obrigatoriamente deveria passar por uma etapa nacional e democrática.

O acirramento das tensões políticas levaria João Goulart a ser deposto e obrigaria todos os comunistas a, mais uma vez, refugiarem-se na clandestinidade. As ditaduras militares que se seguiriam de 1964 a 1985 perseguiram, torturaram e mataram militantes de esquerda, em especial aqueles que haviam aderido à luta armada.

Prestes viveu escondido no Rio de Janeiro até 1971, quando se exilou na União Soviética. Voltaria em 1979, mas suas divergências com a linha seguida pelo PCB provocaram seu afastamento da Secretaria Geral e seu rompimento com o partido. Prestes ainda participaria dos movimentos políticos dos anos seguintes, pela Anistia e pelas eleições diretas e pelas liberdades democráticas. Nelas era recebido com carinho e deferência. Morreu em 1990, no Rio de Janeiro, aos 92 anos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário