sexta-feira, 22 de maio de 2020

Machismo e Acusação Inquisitiva em Dom Casmurro: Forças Subjacentes ao Suposto Adultério.



Por Arnaldo Gomes
Com grande relevância na produção literária de Machado de Assis, o romance Dom Casmurro faz voltar às memórias, “quase póstumas”, que dialogam com Memórias Póstumas de Brás Cubas- obra inicial do realismo no Brasil. 
Conforme afirma Alfredo Bosi, a narrativa em primeira pessoa revela um Bentinho dominado por uma lacuna. Nesse sentido, pode-se perceber a melancolia de Bento Santiago (Bentinho) por meio do relato de suas reminiscências, com um tom negativo não apenas sobre faltas e perdas de outras pessoas em sua vida, mas sobre a falta de si mesmo (capítulo II):

“O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Eu tudo, se o resto é igual, a fisionomia é diferente. Só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e essa lacuna é tudo.”

A leitura atenta dessa metalinguagem pode ajudar o leitor a entender que, nos capítulos subsequentes, o discurso monolítico de Bentinho, interessado em compor a imagem de Capitu como dissimulada e adúltera, é permeado por fissuras reveladoras de ambiguidades: não se deve dar credibilidade ao que profere o narrador acerca da suposta infidelidade da sua mulher, posto que ele mesmo se revela inseguro e, por conseguinte, perturbado; narra os fatos a partir de um olhar uno e inquisitivo. Sob esse viés, vale salientar a reflexão feita pelo filósofo Edgar Morin, de que “ todo ponto de vista é sempre uma vista a partir de um determinado ponto”. Observe-se ainda que, a despeito de toda a acusação, Capitu não tem direito ao contraditório na trama da narrativa.

À luz da processualística contemporânea, poder-se-ia alegar nulidade do processo contra Capitu, visto que não houve isonomia entre as partes, tampouco ela foi intimada para apresentar a sua defesa. Portanto, não existe igualdade e,muito menos equidade, caso se pretenda dirimir um conflito, quando a parte interessada em acusar pretende ainda proferir a sentença.

Entender esse conjunto de elementos que permeiam o enredo é fundamental à percepção de que a genialidade de Machado de Assis não se limitaria certamente à questão instigante sobre a existência- ou não- do adultério em Dom Casmurro. É a partir da compreensão dessas questões que se percebem as temáticas- como o machismo de um “Casmurro” e a acusação sem provas contra Capitu-que emergem como forças subjacentes na obra, cujo debate não se limita às instituições(família e casamento)do século XIX; ao contrário, permanece vivo na sociedade contemporânea,numa prova inequívoca de que o olhar percuciente do autor projeta Dom Casmurro para além do seu tempo e traz à baila temáticas que não se tornam extemporâneas. Ao contrário, permanecem vivas e atuais.

Essa concepção é corroborada pelo próprio Machado de Assis, ao afirmar seu Sentimento de Nacionalidade: “o que se deve esperar de um escritor é,antes de tudo,um certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos num tempo e no espaço”. Faz-se,pois, inconteste a intenção do autor de projetar as diversas temáticas na obra em tela( suposto adultério, machismo, acusação Inquisitiva e violência simbólica), só que o faz em tom nada panfletário ou incisivo. Essas questões, não obstante, devem ser compreendidas nas contradições e fraquezas do narrador-personagem, desveladas no próprio discurso de Bentinho e-intencionalmente- exploradas pelo realismo investigativo de Machado de Assis, um analista crítico à hipocrisia das instituições e um exímio observador da alma humana.

No entanto, é difícil pensar em Dom Casmurro e não ser seduzido a discutir sua temática mais visível. para o escritor Arnaldo Sampaio Godoy, pensa-se que Capitu traiu, porque Capitu poderia ter traído. Essa é,portanto, a mais injusta e infame das provas. De fato, Godoy tem razão. É injusto e violento dar como certo aquilo que poderia ter ocorrido, ainda que não se tenha como provar se realmente ocorreu. É assim que o machismo e a insegurança de Bentinho agarram-se à possibilidade da traição, com o ardil de torná-la verossímil e subordinar a ela todas as conclusões possíveis, a fim de impossibilitar qualquer conclusão que não esteja vinculada à premissa acusatória, escolhida por ele para condenar Capitu. Essa postura unilateral do narrador-personagem pode levar o leitor a emaranhar-se nas armadilhas do enredo e não atentar para o fato de que, contrariando a tese de quem a vê como adúltera, Capitu seria um exemplo de mulher injustiçada, como são tantas outras ainda hoje. Sob o predomínio da presunção de sua inocência, pode ser vista como uma metonímia da parte pelo todo, do individual pelo coletivo: de mulheres vítimas da violência perpetrada pelo machismo. No caso de Bentinho, um machista confuso e de extrema fraqueza moral, visto que teria suportado a traição, sem que tivesse a coragem de romper o casamento,para manter as aparências.

Para além da discussão sobre o suposto adultério, é importante perceber que Dom Casmurro é um libelo de condenação sem provas, bem ao gosto dos inquéritos medievais, que busca construir uma verdade com base numa razão edificada sobre si mesma. Essa inquisição,reprodutora de tantas iniquidades ( contra mulheres, negros, indígenas e tantas categorias historicamente vulneráveis) precisa ser ser suplantada. 
Por fim, se Edgar Morin é cético quanto à imparcialidade do olhar, percebe-se que realidade e ficção andam juntas, já que na obra de Machado de Assis o mais importante não é o fato em si, mas a constelação de intenções é ressonâncias que o envolvem.

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