terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Conto: uma viagem Oito e Meia


O movimento estudantil na década de 1980 estimulou muitos jovens estudantes a praticarem atos revolucionários. Todos desejavam despertar algo de novo para impactar a sociedade, principalmente no ato de se vestir, de lutar, de se comportar e também de viajar em todos os sentidos, para intercambiar com outros estudantes, numa época bastante conturbada: tínhamos saído recentemente de um regime ditatorial. Já era o ano de 1986, e dois amigos, um do bairro da Liberdade e outro do curso de Letras da UFMA, se aventuram a ir para o Rio de Janeiro para participar do Encontro Nacional de Estudantes de Letras. A convite, é claro, das entidades estudantis, só que o itinerário da viagem foi mudado completamente, devido a uma sugestão de pauta do amigo da Liberdade, alegando que iriam gastar menos, e se divertir mais, devido a ter um amigo em Recife, que era estudante de Odontologia.

Nessa época, tínhamos amigos no governo do Estado e o secretário de saúde do governo, era nada menos que Dr. Jackson Lago. O movimento estudantil era apenas o pretexto para adquirirmos recuso para a viagem, o que nós queríamos mesmo era fazer uma viagem para nos divertirmos. Conseguimos as passagens para viajar e para nos mantermos lá. Ao chegar em Recife, fomos direto para o interior do estado, onde morava o tal odontólogo, o município era Ipojuca e o lugarejo era Nossa Senhora do "O", lugar belíssimo e pitoresco. A família do Odontólogo, muito solícita e a irmã, uma fada, linda, meiga, que despertava paixões. Logo nos acolheram, até mosquiteiro tinha na nossa cama para não ter surpresas desagradáveis com insetos. Fomos bem tratados, mesa posta e farta.

No outro dia saíamos para conhecer a cidade, ele utilizou o carro do pai e convidou mais um amigo divertidíssimo. Passando pelos canaviais, logo vi uma coisa inusitada, um caçador, usando um cachorro para pegar as presas no canavial. Podia ser comum para quem vive na zona rural, mas para quem nunca tinha saído de São Luís não era comum. Lá na festa gastamos tudo para impressionar a irmã e o anfitrião. No outro dia fizemos uma visita no centro de Recife, frequentamos restaurantes e tudo mais. A grana já estava acabando e a preocupação aumentando.

Enquanto isso, o estudante de Letras mantinha-se sempre iludido de que iríamos resolver as coisas, caso a grana terminasse, mas não foi o que aconteceu. No outro dia tínhamos apenas o dinheiro da volta. O amigo da Liberdade, sempre preocupado e comedido, dizia: "Vamos de carona, se continuarmos dessa forma. Logo o Estudante de Letras lembrou: vamos no PDT de Recife e pedir ajuda da volta". Chegamos lá, receberam a gente, mas não resolveram. A aventura revolucionária estando prestes a acontecer. E começamos a peregrinação, pedindo carona, de certa forma, tinha muita gente querendo ajudar, tínhamos a convicção da besteira que fizéramos. A primeira carona foi em cima de carro que estava a bordo de outro, balançava mais que barco a vela; chegamos em outro ponto, andávamos quilômetros a pé até chegar em um ponto de polícia rodoviária, logo o policial perguntou: "vocês estão indo para onde meus jovens?"; "Somos estudantes universitários (mostrou a carteira) e estamos querendo chegar em São Luís Maranhão". O policial logo retrucou: " Vocês estão fugidos!". Mesmo assim quis ajudar e conseguiu uma carona boa.

Chegamos em um lugarejo e pedimos água e comida. Sempre dizendo quem éramos. Partimos para a dura realidade, conseguimos outra carona, uma viagem normal de ônibus era pra ser dois dias. Foram 4 dias. Em carona, em carona, cansamos e sentamos na estrada para fazer uma reflexão e planejar o processo revolucionário. Logo o amigo da liberdade se aventurou a ler o livro de Frei Beto "Batismo de Sangue" que fala sobre os dominicanos e a morte de Carlos Marighela. O estudante de letras já estressados e com muita fome, não queria saber nada de livro. Por sorte pegamos uma carona até a cidade de Araripina, já na fronteira com o Estado do Piauí e lá dormimos no banco da rodoviária, um frio tremendo e um bêbado cantando perto da gente, a música: "Lá vem ele com a cabeça enfeitada" de Falcão e Lidiane. O amigo da Liberdade, inteligente e frio disse, tenho uma ideia: pegaremos um ônibus, fingiremos que estamos dormindo, e esperaremos o que vai acontecer. Foi o que fizemos.

Entramos no ônibus cujo destino era Teresina, cheio de velhinhas vindo de um culto, parecia que era coisa de Deus para nos salvar desse tormento que era essa viagem absurda. Entramos, sentamos e logo caímos no sono. A viagem continuou. Quando estávamos perto do destino, na cidade de Picos, o cobrador veio cobrar as passagens, e a gente fingindo que estávamos dormindo, o cobrador querendo acordar a gente, não conseguindo, parou o carro na delegacia mais perto e apontou uma arma para a gente. Confusão pra lá e pra cá, as velhinhas do culto a mando de Deus vieram para salvar a gente, além de pagar nossas passagens, ainda deram bolo pra gente merendar. Chegamos em Teresina ainda com um pouco de dinheiro doado pelas velhinhas. Lá era outra história, tomamos um banho, mudamos de roupa e partimos para a guerra. Tinha um show com cantores maranhenses e tinha uma fila e o estudante de Letras afiado com a forma de pedir entrou em ação, o amigo da Liberdade era muito tímido. Por ironia do destino, encontramos outro estudante da UFMA, empolgado que ia começar a fazer o primeiro período e nos ajudou com dinheiro e com kit alimentação. O recurso deu para comprar as passagens de volta e ainda sobrar para tomas umas cervejas.

Quando os amigos chegaram em casa com aquela barba por fazer e mortos de fome, as mães não lhes reconheceram. No outro dia, depois de fazer a barba, com roupas limpas e ainda de licença do serviço, o estudante de Letras, por ironia do destino recebeu seus proventos e convidou amigos para comemorar a volta da aventura. O cunhado do estudante Letras bebeu muito e ainda dormiu na mesa e se urinou todo, foi muita emoção...

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