sábado, 19 de fevereiro de 2022

Além de Rússia versus EUA, por Luiz Gonzaga Belluzzo


Trabalhadores chineses (Foto: Reprodução)

“Às ameaças americanas de protecionismo, os chineses responderam com a defesa do multilateralismo do livre-comércio. Os yankees gritam: há anos eles, os chineses, roubam os nossos empregos! ”Terça-feira, 15 de fevereiro de 2022, as manchetes informam um arrefecimento nas temperaturas entre os Estados Unidos e Rússia. Os americanos ameaçam a turma de Putin com sanções, caso os exercícios das forças russas na fronteira se transformem em uma invasão da Ucrânia.

Para fugir à imediatidade jornalística, a crise russo-americana reclama uma incursão nos subterrâneos onde se movem os conflitos e geopolíticos e geoeconômico do capitalismo global. É demasiada ousadia, sobretudo para um economista, enveredar por esses caminhos, mas não custa arriscar.

A década de 1970 foi o momento da aproximação China-EUA, promovida por Nixon e Kissinger. A inclusão da China no âmbito dos interesses americanos seria o ponto de partida para a ampliação das fronteiras do capitalismo, movimento que iria culminar no colapso da União Soviética e no fortalecimento do poder americano.

Na aurora dos anos 90, o colapso da União Soviética incutiu no pensamento dominante a convicção de que, com o fim do mundo bipolar, o espaço político e econômico tornou-se mais homogêneo, menos conflitivo, havendo concordância a respeito das tendências evolutivas da economia e das sociedades.

Os catecismos da moda rezavam a tese do Fim da História. Em seu núcleo duro, essas visões afirmavam que as questões essenciais relativas às formas de convivência e ao regime de produção à escala mundial estavam resolvidas. A democracia liberal e a economia de mercado seriam as derradeiras conquistas da humanidade. Sendo assim, não haveria mais razão, dizem, para se colocarem em discussão questões anacrônicas e muito menos para se duvidar do caráter harmônico, cooperativo e pacífico da nova ordem mundial.

O desaparecimento do socialismo e o fim da Guerra Fria criaram as condições para uma reafirmação do poder econômico, político e militar dos Estados Unidos. Esse fenômeno era apresentado como sendo o resultado natural e benéfico de uma convergência ideológica, política e econômica, na direção da democracia e da economia de mercado.

No desenvolvimento dos encontros e desencontros diplomáticos impulsionados pela tensão Estados Unidos vs. Rússia, poucos analistas, além do ­ex-chanceler Celso Amorim, mencionaram o Joint Statement promulgado na abertura dos Jogos Olímpicos de Invernos com as assinaturas de Putin e Xi Jinping.

Em uma clara rejeição da hegemonia do Ocidente liderada pelos EUA nas relações internacionais, a declaração Putin-Xi Jinping afirma que um conjunto minoritário de forças continua teimosamente a promover o unilateralismo, a adotar a política de poder e a interferir nos assuntos internos de outros países. O comunicado salienta que tais atos não serão aceitos pela comunidade internacional.

Não seria impróprio afirmar que o poder americano se debilitou no exercício de suas forças. Mais uma vez, no movimento de suas estruturas, o capitalismo iludiu as conjecturas e os projetos dos homens. O exercício do poder americano desencadeou transformações financeiras, tecnológicas, e geopolíticas que culminaram no enfraquecimento de sua hegemonia.

A partir dos anos 1980, a liberalização das contas de capital, a desregulamentação financeira e comercial, revigorou a vocação universalista das empresas americanas, europeias e japonesas. No afã competitivo de reduzir os ­custos salariais e escapar do dólar valorizado, a produção manufatureira americana abandonou seu território para buscar as regiões em que prevaleciam baixos salários, câmbio desvalorizado e perspectivas de crescimento acelerado.

Isso promoveu a “arbitragem” com os custos salariais à escala mundial, estimulou a flexibilização das relações de trabalho nos países desenvolvidos e subordinou a renda das famílias ao aumento das horas trabalhadas. O desemprego aberto e disfarçado, a precarização e a concentração de renda cresceram no mundo abastado.

No outro lado do mesmo processo, as lideranças chinesas valeram-se da “abertura” da economia ao investimento estrangeiro ávido em aproveitar a oferta abundante de mão de obra. Apostaram na combinação favorável entre câmbio real competitivo, juros baixos para estimular estratégias nacionais de investimento em infraestrutura, absorção de tecnologia com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias industriais e crescimento das exportações.

As manchetes proclamam o paradoxo contemporâneo: há riscos de guerra comercial entre o protecionismo dos Estados Unidos e a China do livre-comércio. Às ameaças americanas de protecionismo, os chineses responderam com a defesa do multilateralismo do livre-comércio. Yankees gritam: há anos eles, os chineses, roubam os nossos empregos!

Os Artigo publicado originalmente na Carta Capital

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