Bibi Ferreira sai hoje de cena, aos 96 anos, mas não vai sozinha. Com ela, saem também de cena Piaf, Joana, Dolly, Amália, Eliza Doolittle e tantas outras personagens e cantoras – reais ou fictícias – que essa extraordinária atriz carioca chamada Abigail Izquierdo Ferreira (1º de junho de 1922 – 13 de fevereiro de 2019) encarnou em musicais de teatro e em shows ao longo dos 76 anos de impagável atuação nos palcos do Brasil.
Entre 1941 e 2017, ano do retrospectivo show Por toda a minha vida – La dernière tournée, Bibi foi quem escolheu ser. Era primordialmente atriz, mas foi também cantora – de repertório poliglota que incluía temas até em alemão e em grego! – apresentadora de TV e diretora de shows de intérpretes como Maria Bethânia. Uma artista multimídia, quando este termo ainda nem havia sido inventado.
Com o talento versátil, Bibi foi fundamental para fazer o público do teatro brasileiro gostar de musicais, gênero que a atriz abraçou com força a partir da primeira metade da década de 1960. Era capaz de fazer todo mundo acreditar que ela era mesmo Piaf, Dolly e a trágica Joana, entre tantas outras personagens de musicais que transcenderam a época da encenação para ficar na memória afetiva das artes do Brasil. Um episódio ilustra esse talento singular. Quando estreou o show em que personificava a cantora portuguesa Amália Rodrigues (1920 – 1999), diva maior do fado, Bibi fez tão bem o papel de Amália como cantora, falando como se fosse a fadista ao longo de toda a apresentação, que ao abandonar o sotaque português ao fim do show, para saudar o público, foi ovacionada pela embevecida plateia que lotava a casa Ribalta, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), numa noite de junho de 2001. O público aplaudiu porque percebeu ali, naquele instante, a dimensão imensurável de um talento que extrapolava qualquer expectativa. Bibi Ferreira era assim. Quando encarnou a cantora francesa Edith Piaf (1915 – 1963) em musical de teatro estreado em 1983 e, anos depois, transformado em show, Bibi conseguiu a proeza de cantar Piaf com a mesma dimensão dramática e vocal das interpretações da diva francesa.
Além da afinação, Bibi tinha notável senso rítmico, o que a possibilitava cantar um samba de Noel Rosa (1910 – 1937) com o mesmo perfeccionismo com que dava voz ao cancioneiro magistral criado por Chico Buarque para a peça Gota d'água (1975), marco do teatro musical brasileiro e um dos muitos ápices da trajetória da artista. Perpetuado em alguns discos com os números e textos dos espetáculos musicais, a arte de Bibi Ferreira foi e é tão grande que não cabe em palavras e nem mesmo em um palco. Bibi Ferreira é transcendental.
Quando a atriz paulista Cacilda Becker (1921 – 1969) saiu de cena, há 50 anos, o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987) subverteu a regra gramatical da língua portuguesa ao resumir a notícia na frase "morreram Cacilda Becker".
Para Bibi Ferreira, vale o mesmo. Essa atriz e cantora multidimensional foi muitas em uma só sem nunca deixar de ser única, inigualável. Enfim, Bibi Ferreira "saíram" de cena para entrar na eternidade.
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