nem os pequenos contra os poderosos,
mas há de haver justiça que reparta
os bens do céu, da terra e dos venturosos."
Gregório de Matos
Nas ladeiras e becos da Liberdade ecoa, há mais de um século, o som dos tambores, dos cânticos e dos passos firmes de um povo que transforma resistência em cultura, e dor em celebração. O bairro, que completa 107 anos em 2025, é mais do que território: é um corpo vivo que pulsa, canta, dança e não se dobra. É memória, é futuro, é o maior quilombo urbano da América Latina.
Aqui, o tempo não corre em linha reta — ele gira, como os corpos nas rodas de tambor, como o couro repicado nos terreiros, como a memória que se recusa a morrer.
O Bumba Meu Boi de Zabumba, legado deixado por mestres Leonardo e *Apolônio*, é mais que folguedo: é resistência embalada em toadas que cruzam madrugadas e costuram o passado ao presente.
Nos terreiros de Pai Wender Pinheiro (Obayzoo) e Pai Airton (Sogbo), o tambor fala, as folhas curam, os orixás dançam e os encantados protegem. São fortalezas espirituais que sustentam a alma do bairro, preservando as raízes que o racismo e o tempo não conseguiram arrancar.
A Liberdade também vibra ao som do reggae, que aqui encontrou terreno fértil, tomando os becos como salões sagrados, onde o grave não é só música — é oração, é encontro, é resistência coletiva.
Se a cultura se faz com corpo e voz, o esporte molda-se em disciplina, força e superação. Da Liberdade para o mundo, surgiram estrelas que desafiaram as cercas da desigualdade e alcançaram o topo: Iziane Castro, gigante do basquete brasileiro, e Ana Paula, referência do handebol nacional.
Suas trajetórias são pontes de esperança, dizendo aos jovens do bairro que o mundo também lhes pertence.
Ao longo do tempo, o bairro nunca foi só palco de cultura. Foi também trincheira. É nas assembleias comunitárias, nos terreiros, nos movimentos de base e nas rodas de conversa que a Liberdade ergue sua voz contra o esquecimento, contra as ausências históricas do poder público, contra os estigmas que tentaram lhe impor.
Aqui, cada batuque é manifesto. Cada toada é uma petição. Cada roda de tambor é também plenária. A Liberdade aprendeu, desde cedo, que viver é, antes de tudo, resistir.
Por muito tempo, quiseram colar no bairro o rótulo de violência. Tentaram apagar sua beleza, sua força e sua potência, reduzindo-o a manchetes sensacionalistas e olhares atravessados de preconceito.
Mas quem anda por suas ruas hoje vê outro cenário: de paz, de convivência, de cultura viva. É um bairro que pulsa harmonia, que constrói redes de cuidado e que prova, dia após dia, que segurança se faz com oportunidade, cultura, afeto e dignidade.
Ainda há muito por fazer. É preciso que o poder público olhe para a Liberdade não com os olhos da omissão, mas com a responsabilidade que esse território exige e merece. O futuro se constrói com investimentos em educação, cultura, saúde e infraestrutura — e essa construção não pode esperar.
Celebrar os 107 anos da Liberdade é reverenciar cada mão que ergueu uma casa, cada pé que pisou firme no tambor, cada voz que entoou um cântico, cada gesto que desenhou futuro onde tentaram plantar esquecimento.
A Liberdade não é só um bairro. É um quilombo de esperança, de luta, de fé e de festa. É a prova viva de que onde há povo, há cultura; onde há cultura, há resistência; e onde há resistência, há futuro.
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