[Desprezo]
Pessoas reviram latas de lixo
em busca do almoço do dia
Transeuntes observam indiferentes
O homem é o cachorro do homem
em busca do almoço do dia
Transeuntes observam indiferentes
O homem é o cachorro do homem
Marta Xavier e Robert Mendes
No Facebook, posiciono o cursor do mouse e
vou rolando devagarinho as muitas mensagens postadas ou comentadas
pelos meus muitos amigos de relacionamento virtual. Deparo-me com um
apelo que me chama a atenção: uma fotografia de um cachorrinho bem
cuidado, limpinho e com boa aparência, abaixo de um texto chamativo,
oferecendo gratuitamente o simpático cãozinho. Logo abaixo da foto, um
texto explicativo: “Estava andando pela rua e achei este cãozinho com a
pata machucada e com fome; fiquei triste com a situação e o levei para
casa. Já o alimentei, dei-lhe banho, levei-o ao veterinário e comprei
uma caminha e uma bacia com areia para ele fazer cocô. Não posso
criá-lo, pois não tenho tempo. Por favor, se souber de alguém que
queira, avise-me.”
Não nego que fiquei comovida com tal gesto. Também gosto de animais de estimação.
Coincidentemente,
na TV ligada em minha frente, vejo um anúncio comercial em que aparece
um cãozinho todo peludo, olhos bem vivos, brilhantes, coberto com uma
pequena toalha. Era um comercial de xampu para cachorros. Não demorou,
um outro comercial apresentando uma nova ração para a raça canina... com
muitas proteínas e outras necessidades que necessitam esses animais.
Vivemos
um momento do politicamente correto, não apenas em relação ao ser
humano, mas também à natureza e aos animais. Hoje, as pessoas sentem-se
muito comovidas com a proteção e o direito dos animais. Dia desses,
minha colega de apartamento chegou em casa revoltada, porque presenciou,
juntamente com outras pessoas, uma senhora batendo no seu cachorrinho.
Pessoas que presenciaram a cena atacaram a mulher e a levaram para a
delegacia, onde foi denunciada por maus tratos ao animal.
Não
sei por qual motivo, lembrei-me de uma cena que vejo constantemente e
sempre me comove: numa calçada por onde passo todos os dias ao largo,
homens e mulheres, de roupas gastas e feições de fome, também largados
pela sociedade, olham os transeuntes com olhos de pedir, em evidentes
sinais de apelo, de pedidos de socorro.
A
indiferença dos passantes é mortífera. Tal qual um projétil lançado
contra o inimigo que ameaça a tranquilidade social. Melhor que não
tivessem nascido!
Socorrem-se,
então, esses miseráveis, com o lixo da vizinhança. Como cães sem dono,
reviram as latas de lixo e disputam o que as sobras humanas lhes
reserva, para comer ou usar.
Num
lampejo, minha mente esboçou uma comparação: “Por que não fazem
campanhas também para adotar mendigos? Por que não se percebe a mesma
sensibilidade em se defender e proteger o ser humano?”
Não
encontrei razões suficientes nem convincentes, o que me deixou perplexa
e, de certa forma, revoltada, pois vem se tornando cada dia mais
frequente nas redes sociais a publicação de mensagens com esses apelos
movidos pela ação politicamente correta em relação aos animais. Mas
muito pouco em relação a seres humanos em condições desprezíveis.
Pensei
em passar a contrapor essas postagens com a seguinte mensagem: “Estava
passando pela calçada de casa e achei um mendigo com a vida machucada,
roubada e com fome, em estado de delírios e alucinações. Fiquei com pena
dele (afinal, sou uma pessoa boa!) e o levei para casa. Já o alimentei e
dei-lhe banho, mas não posso levá-lo ao médico porque não tenho
dinheiro (a medicina privada é cara) e o SUS faz testes de resistência
com os doentes, verificando quem morre primeiro. Além do mais, não tenho
tempo nem disponibilidade para conviver com gente. Quem souber de uma
boa alma que o adote, avise-me.”
Eu
não sei, realmente não sei. Ultimamente, dúvidas tremendas têm me
invadido violentamente a ponto de me jogar num paradoxo colossal. E isso
piora cada vez que vejo e ouço notícias. As mídias estão recheadas de
campanhas para adoção de cachorros, e é comum promoverem desfiles desses
bichinhos ornamentados, bem vestidos e perfumados (a Fashion Week é fichinha diante de tais eventos), em busca de um lar.
Mas
eles não querem só um lar (eles têm vontade própria!). Esse novo
“segmento social” quer uma ração de qualidade e cuidados especializados,
pois são tão superiores que não podem compartilhar da comida de seus
pais (isso mesmo, eles querem ser tratados como filhos mimados!). Querem
xampus da melhor marca, camas macias, vestimentas, dentistas e até
hotéis e spas de luxo, afinal, a tranquilidade deve ser um norteador nas suas vidas laboriosas.
É
uma situação exótica que tem ganhado muitos adeptos, pois além de
envolver questões financeiras, envolve também uma vivência catártica. É
fácil conviver com quem não questiona, com quem balança o rabo quando se
joga um osso, com quem está sempre disponível para lhe sorrir e com
quem se pode exercer o poder do controle. Além de tudo, ainda ser um
produto de exibição para o autoprazer: esfregar na cara do outro um
cachorro de raça nobre criado ricamente.
Percebemos
que, atualmente, uma das vias de disputa do status é consumo dos
cachorros. Tornou-se ele uma condição disfarçada da construção
sentimental chamada “amor” e “caridade” pela causa animal. Para os que
não estão incluídos nesse grupo, há ainda o caminho da espiritualidade, o
discurso religioso e místico que diz que a oportunidade de consumir dos
bichinhos é um contributo para a evolução deles nessa vida. E caso haja
desapego, a pessoa virá no corpo de um cachorro, em outra encarnação. O
que não faltam são modos vis de persuadir o consumo desse produto vivo.
Certo
dia, num programa televisivo, uma defensora dos animais dizia que eles
têm consciência. Diante disso, meu colosso paradoxal se tornou um
indefinível filosófico e psicológico. Meus pontos de interrogação pairam
sobre as cabeças do humano e animal. O que há de consciente nesses
seres dicotômicos? Qual o motivo dessa tentativa de igualá-los? Fico em
dúvida se estão igualando as pessoas aos animais ou os animais às
pessoas -- acho que tudo é verdadeiro. Freud diz que nossa parcela de
animalidade é maior do que o humano em nós, e há quem diga quer SER é
muito definitivo; o mundo parece mais fluido, pelo menos entre cachorros
e pessoas.
Será mesmo o homem o cachorro do homem?
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